Memórias Póstumas de um Caramelo

Segundo o Instituto de Medicina Veterinária (https://institutomvc.org.br), existem 30,2 milhões de cães e gatos em situação de rua no Brasil. Desse total, os gatos representam 10 milhões; e apenas 7.400 vivem em abrigos. Em relação aos cães, dos 20 milhões, segundo ainda o renomado Instituto, em torno de 177.600 vivem em abrigos. E como não poderia deixar de ser, os demais "pets" em situação de rua, dependem exclusivamente da boa vontade das comunidades onde estão inseridos.

 

No caso do nosso Caramelo, ele teve sorte, encontrou pela frente, um grupo de voluntários (o Grupo do Caramelo) que o amou, abrigou-o e o protegeu em sua última jornada. Mas vamos deixar o próprio Caramelo discorrer sobre sua história:

 

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Meu nome é Melo… Cara Melo! A narração a seguir tenta retratar a minha história.

 

Hoje, dia 21.01.2025, virei uma estrelinha… Pelo meu porte terreno, agora sou uma estrelinha da constelação "Cão Menor". Mas nem sempre foi assim!

 

Huuummm… ! Melhor começar essa narrativa de outra maneira, né?

 

Vamos “começar” do início.

 

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Ainda filhotinho, fui adotado, e de início, amado! Depois de adulto, abandonado!

 

Esperem… As coisas não aconteceram assim… Num repente!

 

Vocês lembram da tal Pandemia? Aquela do Covid-19? De quando começou?  Pois é!

 

Naquela época, eu já era adulto e “mais ou menos”, entendia as coisas.

 

Meus instintos alertaram que meus Tutores andavam estranhos, arredios e diferentes! Mas também, quem não ficou, né?

 

Tão diferentes, que um dia, com a maior sem cerimônia e a menor das menores preocupações, me abandonaram no Bairro do Bessa, a umas quatro quadras da Praia do Bessa. Num terreno baldio. Era noite de Lua Nova e a lâmpada do poste da esquina onde me abandonaram estava apagada.

 

E fiquei lá! Sem saber o que fazer e nem para onde ir. Como única alternativa, corri atrás do carro deles. Creio que perceberam que eu os estava seguindo, pois aceleraram e dobraram uma esquina e sumiram na noite. Cansado e cabisbaixo, coloquei o rabo entre as pernas e voltei para a esquina onde me abandonaram.

 

Fiquei vários dias na tal esquina, na esperança que retornassem e me levassem de volta para casa. Esperança inútil! Nunca voltaram!

 

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No início, nas noites frias e chuvosas, procurei abrigo e alimento em vários lugares do Bairro do Bessa. Dormia pelas calçadas, jardins e às vezes em terrenos baldios junto a jericos e mulas que pastavam por lá; e quando chovia, faminto e com frio, me esgueirava para debaixo de um caminhão ou carros estacionados na rua, eram abrigos precários, mas não deixavam de ser um abrigo. Concorda comigo?

 

Com a passagem dos dias, fui aprendendo que onde tinha sacos de lixo próximos a restaurantes, bares, lanchonetes e pousadas, quase sempre tinha comida. Mas a concorrência era grande. E eu, que sempre fui adepto da paz, da boa camaradagem e jamais havia brigado na minha vida, virei presa fácil dos meus concorrentes. Foi um período muito difícil… Às vezes saía mancando e muito machucado. Era terrível!

 

Depois de um tempo perambulando pelo bairro, quando dei por mim, estava no calçadão da Praia do Bessa. O calorão que fazia me estimulou a procurar as sombras das copas dos pés de castanholas; numa área em frente ao Bessa Beach Hotel. Afinal, a minha chegada coincidiu com a saída do hotel, claro!, de um homem com um saco de lixo na mão, que atravessando a avenida, o depositou junto ao poste do calçadão. Indício de possível alimento!

 

Desconfiado, olhei em volta à procura de prováveis concorrentes. A área estava livre!

 

Imediatamente trotei até ao saco e o rasguei sob o olhar crítico de um "pedaleiro" matinal. O saco continha muita coisa, menos comida. Desolado, voltei para o abrigo das sombras.

 

O tempo passou, o sol foi embora e a noite chegou de braços dados com uma chuvinha fina, intermitente e fria. E o Mar, achando que eu, todo encolhido, enrolado como um novelo de lã, estava em relativo conforto; zombeteiro, mandou a sua dileta amiga, a Brisa Marinha, me envolver carinhosamente num manto de gelo. Achei que ia virar um sacolé!

 

Quando amanheceu, faminto e tremendo de frio, arrisquei abrigo debaixo das poltronas e sofás instalados na varanda térrea do hotel. Felizmente, o pessoal da limpeza, ao contrário de outros, deixou-me em paz. No entanto, um hóspede extremamente mal humorado tentou chutar-me. Mesmo sonolento em razão do jejum forçado, safei-me ileso graças ao instinto natural dos Canis Lupus Familiaris. No popular, cachorro! (risos - ou melhor, cauda abanando)

 

Como não estava mais chovendo e o Mar, depois da sacanagem da noite passada, resolvera soprar uma leve brisa para amainar o calor que o sol brilhante da manhã prenunciava. Dito e feito… Não era ainda nem oito horas da manhã, um calor equivalente a um sol para cada paraibano fazia a calçada tremeluzir exsudando calor.

 

Meio trôpego, e depois de trocar o frio enregelante da madrugada pelo calor abrasador do início da manhã, atravessei a rua e fui deitar na areia sob o abrigo das copas das castanholas em frente ao hotel.

 

Mas aí, chegaram uns humanos com cara de “noiados” e exalando cheiro de álcool e maconha. E vejam só, gostaram do lugar onde eu estava deitado. Não deu outra, enxotaram-me aos ponta-pés. Tentei rosnar em minha defesa, mas sabe como é que é, né? Quem é da paz não briga nunca. Deixa pra lá, tira por menos e se retira do local.

 

Faminto e um tanto irritado, perambulei pelo calçadão e quando dei por mim, estava no final da Praia do Bessa e início da Praia de Intermares, em frente ao último condomínio. Lá, para a minha felicidade, algum morador havia deixado um saco de lixo na calçada do prédio, fora da lixeira. Senti que talvez, apenas talvez, naquele saco, quem sabe?, com um pouco de sorte eu encontrasse comida. Mas… Sabe como é que, né? Cachorro mordido de cobra, tem medo de linguiça! Cauteloso, lancei um olhar inquisitivo por toda a área. Nenhum concorrente! Feliz da vida, avancei com voracidade sobre o saco e o rasguei.

 

Comiiiiiiiidaaaaa!!!!!

 

A comida estava meio verde, exalava um cheiro estranho e estava coberta de uns pelinhos acinzentados.

 

Não quis nem saber. Sofregamente, comi tudo!

 

Satisfeito, soltei um arroto gostoso, e trotando, voltei para a frente do hotel. Naquela manhã - tinha observado -, antes do hóspede me enxotar, que o jardineiro quando estava regando as plantas, em um buraco na calçada, a água havia escorrido e formado uma poça. Trotando, resoluto e com a cauda abanando, procurei a tal poça d’água e saciei a sede. A água estava meio morna e na beirada do buraco tinha cocô de pombo. Mas e daí que estava morna e turva? É como diz o verso "Boi com Sede Bebe Lama", da canção “Filho do Dono”, de autoria de Flávio José, famoso cantor paraibano.

 

Bebi tudo, oras! Água é água, e mesmo suja, mata a sede, não é não?

 

De barriga cheia, sede saciada e assim… Como quem não quer, querendo! Me esgueirei para debaixo de uma poltrona na varanda térrea do hotel. Uma bem pertinho do jardim. A comida e a água tinham me dado uma moleeeeza… Uma sonolêêência… Uma brisa fresca refrescando o piso…

 

Dormi o sono dos justos!

 

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Acordei de um pulo e ganindo desesperadamente. Furioso, olhei em volta à procura do seboso filho-de-uma-humana que tinha chutado a minha barriga. Sou da paz, mas tem horas que…

 

A varanda estava deserta de hóspedes, alguns carros e motos passando na avenida… No calçadão, alguns ambulantes… Na praia, uns poucos turistas! E a dor lancinante e atroz, corroendo minhas tripas. Mal aguentando andar, atravessei a avenida e fui deitar na areia sob a sombra dos coqueiros. Estava tão mal que nem liguei para os xingamentos e as ameaças de chutes dos “noiados” de coração peludo.

 

De repente, a minha barriga começou a ferver, e tudo o que eu tinha comido, junto com minhas tripas - temi - como um jato, esguichou na areia - os “noiados” fizeram caretas de nojo -. E quando achei que o tormento tinha acabado, veio uma segunda e uma terceira onda… Só que eu não tinha mais nada para expelir. Apenas fiquei com a boca espumando, a garganta pegando fogo e as tripas se contorcendo.

 

A cabeça rodou e acho que desfaleci e fiquei lá… Prostrado! Olhos esbugalhados e com a língua pra fora. Exangue!

 

Acredito que algum transeunte passando pelo calçadão, vendo-me só “capa-da-viola”, com certeza, pensou: “Caramba! E não é que largaram um cachorro morto na areia?

 

Mas aí é que ‘tá! De onde menos se espera é que vem as boas surpresas… E não é que uma Humana… ‘Peraê! Simplesmente humana, nããão! Uma Dama…!!! Na verdade um anjo enviado por São Francisco - aquele santo amigo dos animais, lembram? - veio em meu auxílio.

 

Huuuuuummmmmmm…. Curioso para saber quem é o Anjo, né? Pois então…

 

Esse ser especial, esse Anjo - pois é! Tem humano que tem o coração dourado -, é uma Dama que junto com sua família, ganha a vida alugando guardas-sol na praia. Essa Dama, ou melhor, esse Anjo do tal santo, acolheu-me nos braços e me levou para uma clínica veterinária. E veja bem… Par..ti..cu..lar! Não levou para o hospital veterinário da Prefeitura onde a fila de espera é enoooorme. Nããão! Levou-me para uma p  a  r  t  i  c  u  l  a  r, e tudo por conta dela. Somente lá, é que fui saber que eu havia contraído uma tremenda infecção alimentar. Na época, quase virei estrelinha!

 

Ela pagou todo o meu tratamento e quando recebi alta, me trouxe de volta para a praia, onde retornei à minha rotina. Claro! Tomando o devido cuidado para não ingerir alimentos com aparência estranha.

 

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Algum tempo depois, numa certa noite, um Humano (com “H” maiúsculo) apareceu pelo calçadão e caminhou em minha direção. Levantei uma das orelhas e estreitei os olhos. Desconfiado! No entanto, ele veio caminhando devagar em minha direção e trazia dois recipientes nas mãos. Um contendo comida e o outro, água.

 

Sem dizer nada, ele deixou os recipientes na minha frente. Ameacei uma imitação de rosnado, mas ele não se intimidou e nem se afastou, apenas sorriu amistosamente. Cuidadosamente, ele aproximou a costa da mão no meu focinho para eu farejar e, talvez, sentir a energia positiva dele. Cuidadosamente, um olho na comida e outro nele, encostei meu focinho na sua mão. O odor que aspirei exalava bondade. Mais tranquilo, me aproximei do vasilhame contendo o alimento. Tranquilo em parte…! Desconfiado, cheirei o conteúdo. Vai saber, né? O aroma era bom… Bom, não! Deu água na boca! Mesmo assim, revirei a comida com o focinho, sem comer, claro! Mas o aroma era inebriante. Cheiro de carne de frango com cuscuz. E não estava frio. Era comida fresca!

 

Comi tudo e ainda lambi a vasilha. Deixei-a brilhando! Em seguida, arrotei com satisfação, e me virei para a vasilha com água. Ela estava limpa e… gelada! Bebi até faltar o fôlego.

 

Barriga cheia e sede saciada, olhei nos olhos do Humano e fiquei abanando a cauda, agradecido! Depois me virei e caminhei para o meu canto debaixo dos coqueiros. Porém, a meio caminho voltei a cabeça para o meu benfeitor. O Anjo, com um sorriso de orelha a orelha me olhava com extremo carinho. Aquele olhar não continha apenas carinho, ele também estava envolto de amor e compaixão. Antes de deitar, balancei a cauda para ele mais uma vez.

 

Dessa noite em diante, os dias e as noites passaram num turbilhão de boas surpresas.

 

Numa certa manhã, na volta de uma das minhas andanças ao longo do calçadão, no meu cantinho rente às raízes do coqueiro, para a minha grata surpresa, havia uma casinha de cachorro. E ao lado da casinha, com um grande sorriso estampado nos lábios, estava o Anjo que havia me levado para a clínica veterinária.

 

Fiquei saltitando e abanando a cauda em volta dela. Quando me acalmei um pouco, A Dama se agachou e me abraçou murmurando com carinho:

 

"Proooonto, Caramelo! A partir de hoje, você não vai mais dormir ao relento. Você agora é dono e proprietário de uma casa na praia!"

 

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Pois é! Desde o dia em que deixei de ser um "sem teto", as coisas foram ficando cada vez melhores. Outros Anjos se juntaram aos primeiros. Isto é, aos dois elos de bondade, outros elos se uniram numa corrente de solidariedade aos animais comunitários do Calçadão da Praia do Bessa. Todos os dias, nas primeiras horas da manhã, havia sempre uma vasilha com água fresca. E logo em seguida, chegavam outros Humanos com alimentos variados… e frescos! Tinha dia que traziam carne moída; outro dia, salsichas ou carne de frango. Às vezes, um Humano Anjo, funcionário do hotel, me trazia… Luxo dos luxos: calabresa e ovos mexidos!

 

Êêêêêpa! Êpa! Êpa! Êpa! Não fiquem pensando que esse Anjo do hotel pegava comida fresca que seriam servidas aos hóspedes, não!

 

Deixa eu explicar! Acontece que os hóspedes deixavam restos de seus cafés-da-manhã. Esses restos eram recolhidos e jogados no lixo… E como o Anjo passou a observar que o Grupo do Caramelo levava alimentos para mim, ele deve ter pensado. Por que, não? Em vez de jogar fora, vou levar para o Caramelo da praia. Aliás, ele se integrou ao Grupo!

 

E assim, começou a minha mordomia matinal.

 

Vocês devem estar se perguntando: E o almoço? E a janta? Pois é… A corrente de solidariedade se estendeu para o almoço e a janta. Sempre tinha alguém do Grupo do Caramelo trazendo o almoço e a janta. Eles traziam e se comunicavam pelo “zap-zap”! Xique, não?

 

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Mas sabe como é, né? Em todo paraíso tem sempre uma serpente!

 

Minha vida transcorria tranquila… Em parte! É claro que no meu tempo de andarilho abandonado, eu havia contraído algumas comorbidades detectadas pelo Veterinário que havia me curado da infecção alimentar. E é claro também que o Grupo me dava vários medicamentos receitados.  Ainda assim, era amado, querido e alimentado pelo Grupo do Caramelo.

 

Mas… - Em toda história sempre tem um “mas”, né? - Um certo dia acordei com um calorão da “mulesta”, botando a língua para fora e respirando com dificuldade. Extremamente cansado! Além do calor, não tinha apetite, e quando tentava comer, vomitava tudo. Passei o dia inteiro enfurnado na minha casa. Respirando com dificuldade e sem vontade para nada!

 

À noite, quando alguns do Grupo do Caramelo trouxeram a janta, perceberam que eu não tinha tocado a comida do almoço e a vasilha de água ainda estava cheia.

 

Sonolento, exausto e fraco, creio que ouvi alguém comentando:

 

“O Caramelo está muito estranho. Não comeu nada e o rapaz do hotel me disse que hoje ele não saiu da casinha dele!”

 

Outro comentou:

 

“Se amanhã ele continuar assim, vamos ter que levá-lo ao veterinário!”

Dito e feito! Passei a noite respirando com dificuldade, calorão infernal e com ânsia de vômito.

 

Quando o dia amanheceu e um dos Anjos trouxe comida e água, eu continuava prostrado e nem sequer levantei os olhos para ele. Com meus olhos entreabertos, percebi que o Anjo pegou um objeto do bolso e ficou um tempo batendo o dedo nele. Daí a pouco, outros Anjos chegaram e não pensaram duas vezes. Pegaram-me nos braços e me levaram para uma clínica veterinária onde foi constatado que eu contraíra a Doença-do-Carrapato. Geralmente fatal!

 

Fiquei uns dias em tratamento e quando melhorei voltei para a minha casinha. Ainda fraco, mas estável. O ruim é que fiquei vários dias tomando umas bolinhas brancas… Na marra! Uma integrante do Grupo do Caramelo, uma baixinha, chegava, enfiava aquela bolinha na minha garganta e fechava a minha boca com as mãos. Eu engolia a contragosto, mas engolia! Fazer o quê?

 

Com o passar do tempo, fui melhorando… Melhorando… Até que um certo dia até trotei rente a água.

 

De volta ao meu cantinho junto aos coqueiros, onde estava a minha casa, encontrei uma vasilha de comida cheia de carne de frango, cuscuz e ovos mexidos. Olhando para aquela delícia, percebi que estava faminto. O  couro da barriga encostando no espinhaço. Comi tudo num respiro só.

 

Novamente, os dias passaram na mesma feliz rotina… Acordava com a comida ao lado da minha casinha, devorava tudo, bebia água, andava pelo calçadão, depois voltava para o meu canto, escolhia uma sombra e dormitava até a hora do almoço. Os Anjos estavam sempre presentes trazendo comida e água fresca.

 

"Ô vida marromêno, hem?"

 

Pois é! E não é que a Serpente do Paraíso ainda continuava rondando o meu pedaço de Éden? Quando eu pensava que tudo estava voltando ao normal; certo dia, acordei sentindo os mesmos sintomas de antes. Pois não é que a sebosa da Serpente mandou um dos seus sicários, um Carrapato Estrela, sugar meu sangue enquanto eu dormia o sono dos justos.

 

Não deu outra… Falta de apetite, calor infernal, prostração e etc etc etc…

 

Os Anjos me levaram para a clínica veterinária, onde fizeram exame de sangue, e… Doença-do-Carrapato mais uma vez! E com um agravante: Anemia profunda e fígado em frangalhos.

 

Mais uma temporada na clínica e nada de melhorar… Não comia e nem bebia água. Ficava lá, olhos fechados, respiração pesada, língua branca e olhos amarelados… E os Anjos autodenominados Grupo do Caramelo, extremamente preocupados com a minha precária saúde. Algumas humanas choravam sem pudor. Os humanos disfarçaram alegando um inoportuno cisco no olho. O ambiente estava pesado!

 

Certa hora, ouvi o veterinário, meu médico particular, dizer que ia tentar uma transfusão de sangue, vez que a minha anemia estava severa. O grupo de anjos concordou imediatamente.

Testaram uma doadora, porém, infelizmente ela não era compatível. Minha saúde de mal a pior!

 

Em dado momento ouvi sorrisos de satisfação, acharam um doador compatível. Eu revirando os olhos, e a equipe que me assistia preocupada!

 

Iniciaram os procedimentos enfiando uma agulha na minha veia… Depois de um tempo sentindo aquele líquido morno entrar no meu corpo, por incrível que pareça, ouvi um silêncio inebriante… Uma paz… E impressionante, senti o som do Universo… Das estrelas!

 

Quando abri os olhos, achei estranho! Flutuava acima da mesa e vibrava com uma poderosa energia. Incrível! O meu corpo havia sumido e meu contorno era formado por uma aura de luz. Abanei a cauda satisfeito da vida!

 

Porém, a imensa paz que sentia foi abalada por uns soluços que vinham da Sala de Espera da Clínica Veterinária. Como estava flutuando, impulsionei minha aura para o local; e para minha tristeza, vi o pessoal do Grupo do Caramelo consternado, inclusive, algumas Humanas continham soluços abafados.

 

“Oxente! O que é que está acontecendo? Afinal, estou mais do que bem e todos deveriam estar sorrindo de felicidade. E no entanto, alguns estão chorando?”

 

Aproveitei que agora eu podia flutuar e me deslocar silenciosamente para onde bem entendesse, novamente impulsionei minha aura para a Sala de Cirurgia.

 

“Oxente! Por que o meu corpo não estava em cima da mesa, e sim, dentro de uma gaveta, língua caída de lado e olhos esbugalhados?”

 

E foi então que a minha ficha caiu… Eu havia partido dessa para melhor! Tinha virado Estrelinha!

 

Quando a notícia se espalhou no calçadão, foi uma consternação geral. Eu nunca desconfiei que era tão querido pelo pessoal do calçadão.

 

Depois de uns dias, cremaram meu corpo e fizeram uma pequena cerimônia de despedida jogando minhas cinzas ao mar.

 

Daqui da Constelação do Cão Menor, observando tudo, pensei:

 

O amor é um sentimento estranho. Ele surge do nada, cresce sem raízes, e mesmo assim, sem raízes e sem nada, ele te envolve de uma maneira tão densa que você ama sem esperar nada em troca. Apenas um sorriso… ou um abanar de cauda de basta!

 

João Pessoa/PB

Fev-2025/Arigó