O palhaço e o espelho (segunda parte da ''Casa que morro'')
A casa não era barco: as goteiras a afundaram. O coração? Afogou. O cérebro? Queimou. A jovem língua só sabia chorar.
Mesmo destruída, ainda era minha casa, eu que fiz… O espelho da cozinha, onde aconteciam os banquetes, era torto e agora é estilhaço. Cada caco tornava minha casa em reflexos tortos do passado. Chorei pela primeira vez.
Reúno as madeiras podres para fazer uma jangada e fugir do Dilúvio que explodira a casa.
Parto em direção aos mesquinhos raios de luz. Raios que rezo para ressecarem toda a água das goteiras e que agora eram águas do meu mundo.
Dou risada, pois vejo nas correntes d'água as mechas de seus cabelos encaracolados e o fundo do mar com seus braços. Ouve minha risada um palhaço ilhado que também ri. Me aproximo:
— Pra q tanto riso? -- gagueja minha jovem Língua.
Mas o palhaço não nos responde, continua rindo. Desço na ilha.
— Vc n cansa? -- cospe minha jovem Língua violentamente.
Mas o palhaço não nos responde, continua rindo. Percebo que há algo afiado em sua mão.
Era uma memória. Agora eu rio. Na verdade, era mar. Penso nesse trocadilho e continuo rindo. A memória era de um dos banquetes com aquela Mulher. Memória de quando derrubei sete ovos no chão.
O palhaço parou de rir com a minha risada. Ele chorava. Vejo que roubei o riso dele.
Conforme chorava, a maquiagem branca caindo também revelava suas formas: era macaco, depois saco de lixo, depois medo e depois o próprio mal. Voltei à jangada, não queria ver mais alguém afogado em goteiras, mas não parava de rir.
Longe da ilha, não tanto, mas longe, vi a criatura se transformando em mim. Por fim, gritou e se desfez.