A MEMÓRIA PERDE PASSAGEM
Tarde preguiçosa, nada para fazer, a não ser recordar...
Revejo, em pensamento, a Rua Antônio Basílio, ainda com casas, eu a caminhar com a babá. Uma das pequenas bolas com que brincava ficou na calçada. Deixei-a cair? Ou fui eu quem caiu e ela escapou-me da mão? Por que nenhum de nós a recolheu? Lá se vai tanto tempo! Só sei que perdi o brinquedo.
A mente passa a uma outra lembrança esfumaçada. Vejo-me sair em disparada, no carro vermelho (conversível?), levando a menina que pretendia namorar. A professora e colegas da escola a agitar os braços e a ordenar que eu voltasse. Puro devaneio infantil. Esforço inútil, tempo perdido. Não há como dar marcha-à-ré no veículo imaginário. Nem existe volta ao passado.
Dou um salto no tempo. E na condução.
Tomo o ônibus 606 na Rua Pinto de Figueiredo para saltar na Rua Barão de Mesquita. Hora das aulas de violão. Pequena distância física, intransponível distância artística. Sem dom para a amada música, que até hoje me limito a ouvir. As notas que deveriam ser tiradas do instrumento ficaram no ar. As notas que o velho gastou em meu fracassado aprendizado perderam-se, sem retorno no investimento. Isso até daria um belo samba-canção se eu soubesse compor...
Distraio-me momentaneamente, a olhar pela janela. Por quantas janelas olhei durante minha já longa vida? Tantas visões ora em ritmo de revisão.
Que horas são?
Mesmo sem usar relógio há mais de trinta anos, não deixo de ser escravo do tempo. Senti muitas revoltas contra esse patrão inclemente. Sabor de desforra ao aposentar-me. Agora, considero dispor de todo o tempo do mundo, embora o que me resta de anos e horas seja pouco, talvez nem compense tudo que perdi no passado, a correr contra os ponteiros.
Esse último vocábulo leva-me de volta aos memoráveis campos de futebol. Peladeiro inveterado, para quem jogar bola sempre foi prazer inesgotável.
Quando as peladas de rua se elevaram a campos com balizas, o menino queria ser ponteiro, como Garrincha ou como Telê. Muitas vezes acabou como lateral, mas mesmo assim se mandava para o ataque e até marcou tentos inesquecíveis. Claro que perdeu outros tantos, mas isso nem vale a pena lembrar.
Importante era atuar pelas extremas, viver a alegria do jogo ao extremo, como era bom! Pelo menos nos campos de pelada, as posições extremas reuniam algum sentido. Em tudo mais, nada como o equilíbrio, a moderação, o bom senso...
Opa!
Hoje é terça?
Que dia joga meu Fluminense? Não entro mais em campo, salvo para um ligeiro bate-bola com meu neto. Resta-me torcer. E acreditem, trata-se de esforço hercúleo. Haja coração!
Retornam os devaneios. Grandes ídolos esportivos de outrora misturam-se àquelas bolas trocadas gol a gol com vários primos e amigos em lugares diversos. É preciso chacoalhar a mente, deixar-se levar pelo entusiasmo das imagens perdidas no tempo e no espaço. Passagens para outras dimensões.
Que fim levaram meus queridos tênis Rainha? Aquela revista do Falcão Negro? O jornal onde finalmente publiquei (de verdade, literalmente) meus primeiros cartuns?
Retomo a caminhada pela Rua Antônio Basílio, dirijo-me à Praça Saens Peña para ver a água que o boi bebeu (segundo meu jocoso pai), comer pipoca, ir ao cinema, paquerar e, principalmente, embolar memórias de diferentes épocas, perdendo-me no turbilhão do meu próprio eu. Na suposição algo ilusória de conhecer-me de fato.
Longos e curtos saltos no tempo, curto-circuito de recordações e imaginação vespertina, lançando serpentinas no carnaval tijucano da vitória do Salgueiro, que, esse sim, pede passagem. De fato e de direito!
Por falar em fatos, de quais derivam as lembranças? Como se passa do recordar ao imaginar? Os pontos de passagem são confusos às vezes, levando o pensamento a recordações inesperadas, até indesejáveis, enquanto a mente divaga, algo perdida.
Memórias ao léu!
Lembranças ao Léo.
Ou à Léa. Se é que conheço alguém com esse nome.
Brasília, agosto 2023 – revisão novembro 2024.