O ENIGMA DA FOTOGRAFIA
Deem-me licença para me identificar, neste momento, como Santhiago Roberto. É de imensa consternação que vos conto uma peripécia das mais lisonjeiras e fascinantes já ocorridas na minha existência, sucedida nesta bela manhã amena e pouco chuvosa! O céu estava alaranjado, e na copa das árvores os passarinhos cantavam, uns melodicamente e outros carnavalescamente, uma variedade de sons que me deixara muito agradavelmente confortável e extático ao mesmo tempo! É necessário que eu também mencione alguns dias atrás em relação a este relato, de extrema ansiedade que eu nunca havia presenciado, um sentimento de confusão que havia se prolongado por poucos dias, é verdade, porém suficiente para me causar um desconforto excruciante!
Aquela sensação abrasiva permeada pelo tédio e o excesso de pensamentos conflitantes e indecisão foram aos poucos sendo sanados, conclusivamente após eu me estabelecer em um ambiente familiar e que me proporcionara um prazer estético e sinestesia através do respiro e refulgor de minha respiração enfim controlada. Pois estava debruçado em meus estudos e em devaneios, quando então decidi retornar às obras de meu escritor favorito, L.V.
É de saber que há muitas coisas que nos aproximam, algumas mais notáveis: nascemos no mesmo dia da primavera, e nossos trabalhos evocam um tempo da infância em constante recuperação, como aquelas paisagens da inocência pintadas por Blake, ou como Carroll deixou-as registradas e adornadas em uma atmosfera de maravilhas excêntricas! Acrescento que L.V é um ótimo contador de histórias: sua forma de trabalhar com a linguagem e suas bizarrices, ampliar os horizontes da mente, ademais a doçura e magia banhada na face de uma criança como inspiração transbordante de uma sabedoria e um conhecimento intuitivo e subjetivo metamórfico que é inconfundível!
E então, vós que acompanham a leitura, nesta mesma manhã se processou um detalhe incrivelmente particular, em que esbarrei e me dei defronte de meu próprio destino, se quiserem o chamar assim… acontece que eu havia pensado sobre diversas coisas impossíveis durante aquela noite em que estabeleci minha calmaria, até começar a adormecer tranquilamente em uma madrugada arroxeada com a Lua deveras brilhante, que mais parecia uma pedra de Bolonha faiscando luzes nas pradarias dos campos verdejantes! Decerto que, então, senti-me um tanto estranho após despertar, ao mesmo tempo envolto de um sentimento de familiaridade; no momento em que eu estava de posse de meus tantos arquivos, escolhi a dedo uma análise de elementos simbólicos, filosóficos, alquímicos e psicológicos de uma das obras de L.V.
Rapidamente tomei notas, e tal qual um investigador a pesquisar as fontes que se interconectam e sempre transportado com o caráter da intuição, compunha um cenário mental de colagens e fragmentações prontas em quebra-cabeças com inúmeras possibilidades de decifrações. Porém, no instante de minha pesquisa não consegui encontrar as informações acerca dele, quando então parti para outros mecanismos… saiba que pesquisei em diversas fontes, mas nenhuma mínima informação advinha, nada constava. Então, subitamente, uma coletânea de espanto e curiosidade tomou conta de meu espírito, até que decidi me comunicar com algumas pessoas próximas em que já debati aspectos da obra de meu amado escritor, para que eu pudesse então resolver o problema que ainda desconheço e que havia se apoderado de meu aparelho. Ledo engano: as pessoas sempre negavam sua presença neste mundo; até mesmo quando eu proferia alguns detalhamentos para aqueles mais íntimos; alguns afirmavam que eu tinha tido um sonho e tanto, outros que isso era ou genialidade ou loucura — ou ambas, eu diria —, ou que meu espírito literário é criativa e imaginativamente sem limites deveras!
E que sonho vívido! Mas então eu me pergunto: por onde se encontram aquelas memórias? Aquilo tudo nunca foi vivenciado exatamente, sendo um longo sonho em que acordei agora mesmo? Oh! quanta bobagem! Mas geralmente algumas bobagens devem ser levadas a sério! Tudo se encontraria como um produto de minha mente complexa?
Apesar de nenhuma mísera informação existir mais em todos os canais de informações possíveis, estava preservado todos os outros materiais que estavam unicamente em minha posse. Diante disso, como um colecionador psicodélico e aficionado por colecionar tudo o que podia sobre L.V, desde livros, objetos, pôsteres, pinturas…, surpreendeu-me por também ainda existir uma fotografia dele!
Na sacada de meus aposentos, mirando fixamente para ela, ali, repousante em minha escrivaninha acima das três gavetas e de alguns papéis divagantes, em preto e branco, olhando-me fixamente, como se a qualquer leve intervalo pudesse dar uma piscadela!... não podia ser! É mesmo algo singular e assustador, mas prazeroso também, sobretudo porque mais fenomenal que aterrador, portanto eu tremia, mas por pouquíssimo período; de forma que meu espírito alargava, como que foi passear nos campos da morada das criações! — como que embebido pelos mistérios de Elêusis!
Nesta ocasião, acredito que você pode sentir a perplexidade em que eu me encontrava. Apesar de toda aquela situação, eu me contive um pouco. E mais uma vez retomei minha busca. Poderia ser apenas coisa da minha cabeça, pois não! Todavia, eu estava muito sóbrio. Mas então foram dezenas, centenas, milhares de vezes e absolutamente aquilo estava vazio, semelhante a uma noite sem estrelas em um terra distante e inconcebível — nada se apresentava com as iniciais do meu escritor fantasma. Não estou de fato muito convencido disto? Eu bem sei, os mortos podem ter muito a dizer, e se recusam senão a se tornarem tão vivos! E aquilo estava, em sua nudez, cru e sobressaltado apenas para os meus olhos! Bem à minha frente, como o céu a banhar os prados e a gota das folhagens a entrar em contato com a pele; tal qual o sabor do chá e a sensação de madeiramento da mesa e as teclas da máquina de escrever!
Apesar de que sou sempre um voraz leitor e escritor, nunca tive sucesso em nenhuma de minhas produções e empreendimentos literários, sequer de minhas obras incompletas sempre imersas nas curvas labirínticas de minha mente! Eu sempre sentia que faltava algo, sendo inexplicável, uma resistência, uma sobrecarga… mas algo estava começando a mudar… eu faria exatamente isso que estava passando em minha cabeça?! Negar aquilo era impossível! Era minha chance de conseguir o reconhecimento… sim, eu sei, parece algo como uma obsessão pela importância dada a uma visão de reconhecimento de outrem, mas não! Não é isso, é algo maior que isso, acredite!... — é como um rasgo na realidade, sabendo-se que a existência acontece em uma outra morada!
Estava com os pensamentos a rodopiar como um pião a produzir furacões empoeirados de uma areia particular em uma paleta de cores! Pensei nas questões éticas, afinal estaria eu roubando de meu mentor, daquele por quem nutro profunda admiração e intensa afeição? Mas da mesma forma também, pensativamente, cheguei ao ponto de que não poderia deixar sua memória se apagar assim demasiado facilmente, tendo o poder bem nas minhas mãos, e sentia que poderia perfeitamente preservar seu nome à posteridade! Sim, estou certo disso… não podia… não podia… és aqui uma questão de preservação, numa luta constante para manter a existência, apesar de que em um nível de minha consciência alertava-me sobre uma obra que não me pertencia como autoria. Seria mesmo? Esta obra que me identifico tanto, imensamente, será que não me pertence também?
Pois bem, estou decidido, muito decidido a me apossar de sua leitura e seu alcance, entregando-me novamente e inteiramente àquele livro vermelho! O mais impressionante é que tem-se mantido até mesmo as ilustrações, e que notáveis ilustrações! Não era preciso modificar nada, e até mesmo usar o mesmo pseudônimo L.V. Não era preciso queimar sua imagem, daquele escritor com feições indubitavelmente parecidas com a minha! Eu nunca tinha parado para passar meu olhar detalhadamente em cada tom de seus traços faciais, e nem em sua postura enigmática e também belíssima, parecendo envolver-lhe de uma luz emoldurante, dourada de raios solares no verão mais resplandescente!
Eu pensei em usar aquela imagem como alguém que veio em sonhos, como um recurso pessoano, uma parte de mim mesmo e contudo independente! De um efeito fabricado devido uma passagem por um portal, visitando a Terra das Fadas! Por que ignorar tais constatações?... aquela imagem sem cores, aquela camisa e aquele colete, a roupa formal e ao mesmo segundo penetrada por um ar rebelde! Não é de passar despercebida, mas sua imagem estava agora colorida, em uma miscelânea de cores em que o vinho se sobressaía, combinando com a tapeçaria vermelho-sangue; ganhando, pois, vida! A um sopro vivificante em uma estátua rígida! Em um transe, que se passe-t-il, je teste les scénarios!... goût sucré et amer de la nourriture! — expressara em uma sotaque idêntico ao dele, mas em francês! Concomitantemente, e olha que algo espirituoso, ele não é francês, talvez a testar seu plano multilíngue, provando novos alimentos por curiosidade.
Não mais que compenetrado, quase sem piscar os olhos, aquilo cada vez mais me mostrava algo, como caindo os véus de uma realidade ilusória! Convém de que, esse algo, que eu não conseguia depreender instantaneamente, explicaria irrepreensivelmente as buscas fracassadas, e também, mesmo desconhecendo naquela hora, um sentimento aprazível retirou de mim um peso exorbitante de que eu poderia estar me apoderando de um trabalho alheio, mesmo que intrínseco a mim mesmo! E o céu era como se abrisse na metade, escancarando um infinito de perspectivas… Eu então caminhei… Caminhei bastante e percebi a vastidão de toda aquela paisagem, correndo sobre as campinas! De modo que fui inundado de um sentimento em que compreendia o meu espírito a ansiar em habitar o país em que as coisas acontecem de uma forma grandiosa, esplêndida! Como se eu acordasse com uma imensa vontade de atingir os cumes e picos montanhosos… isso me dava uma certeza de que, mesmo que eu escorregasse e deslizasse o mais possivelmente, eu sempre poderia contemplar aquela luz, nem que fosse de maneira ínfima, e isso bastaria para eu pensar, bastaria para ficar sempre pensativo, para que pudesse sair do abismo lamacento da dura realidade e alcançar os abismos dos altos ideais!
Naquela circunstância, não era como uma única revelação, era como uma tempestade delas, provindo de todos os lados e direções, junto à ventania a balouçar em meus cabelos, e sucumbindo como que falando em palavras que um novo dia havia despertado! Aquilo me trouxe uma visão de mistérios e possibilidades, de coisas impossíveis a brincarem freneticamente no pensamento! Eu pensava assiduamente naquela porta para o roseiral muito bem tecida por Eliot, que nunca atingiremos, porque tudo o que poderia ter sido permanece eterna possibilidade! E tudo o que é realmente já se processa enquanto todas as outras infinitas possibilidades que poderiam ter sido é um detalhe surreal de diversas formas que permanecem prontas para que possam acontecer! É de perceber a atemporalidade das coisas. Eventos de possibilidades que poderiam ter acontecido, não deixam de ser encontrados: é como se tudo já estivesse ali, porém escondido nos escombros dos mistérios espumantes das florestas da imaginação, pronto para o desvelamento! — como tudo estando já presente, pronto para ser acessado e experimentado. Foram exatamente estas palavras que saíram de meus lábios, com pequeníssimas pausas. Neste ponto, eu cheguei mesmo à minha porta de acesso para o desvendamento!:
E, num relance, eu tive a marcante revelação, daquele enigma fotográfico, da fotografia de meu querido escritor que eu sempre mantinha próximo de minha cabeceira por um longo período, desde minha tenra infância! Sim, esta era a marcante revelação! Bem, eu logo constatei que todos aqueles detalhes, após serem contemplados por minha visão multifacetada, testemunharam a solução: aquilo não era nada mais que eu mesmo!
A. de S.