Criaturas da noite
Mais uma noite se aproxima. O generoso dia de sol, lindo e imponente que aquece nossos corpos nesse inverno rigoroso de ventos gelados e cortantes, nos deixa mais uma vez de forma abrupta. Cada vez mais sinto o frio chegar aos meus ossos enquanto meus lábios racham ao sabor do gelado ar que nos toma conta, à medida que a lua dá boa noite dando despedida ao astro-mor, para mais uma vez desnudar os segredos da noite.
Ah sim! A noite. Cada dia mais soturna e sombria nesses tempos em que a escuridão parece querer dominar, não apenas a paisagem dessa cidade, mas também as almas e corações que nela caem em suas garras. Pois é na noite que encontro segredos, desde os mais pecaminosos, impuros e excitantes que instigam os instintos mais primitivos dos homens, àqueles que permeiam à maldade humana nos remetendo a desvelar diversos mundos sombrios num mesmo lugar. Aqui, nas ruas dessa cidade, vejo com meus olhos, por um raro dom agraciado pelo Senhor, o mundo como realmente ele é, perante suas sombras. São nessas ruas que vejo aquilo que outros homens não conseguem ver, através de sua simplória natureza. O oculto, o escondido, o perverso, o abominável, o maligno.
Agora é 01h30min da manhã. Hoje, durante o jantar, eu não bebi. Resolvi dispensar minhas habituais duas taças de vinho tinto para que, mais uma vez, por entre a vastidão daquelas ruas frias e escuras eu possa enxergar, com a devida lucidez, as trevas em sua essência. Dirijo-me ao meu carro devidamente agasalhado e com ele, por mais uma noite, irei ao encontro delas. É preciso, pois é na noite que elas se revelam por completo e quando posso encontrá-las na busca pela compreensão de suas naturezas infames, maravilhosas e, ao mesmo tempo, horrendas e extremamente corruptíveis, quando não já consumidas, por completo, pelas trevas. Ah sim, as trevas! A ausência da luz, da razão e da civilidade, em prol dos mais hedônicos atos. E por ela hoje, à noite, circularei.
Na principal avenida da cidade, em meio à densa neblina, sobre o seco asfalto, onde pequenos raios de luz a atravessam advindos dos postes de iluminação, vejo as primeiras delas. São andarilhos da noite que andam em bandos, curvados e envoltos a cobertores de lãs baratos, arrastando-se sem um rumo definido, senão apenas movidos e orientados pela constante fome por almas desalentadas como a delas, já tragadas e enviadas ao inferno. São mortos-vivos sem consciência cujas bocas não se pode ouvir um som sequer, adornadas por poucos dentes afiados e feridas abertas. Elas olham para mim, girando levemente suas cabeças e arregalando seus olhos sem brilho algum. Mostram suas presas na tentativa de emanar um rosnado selvagem, porém inaudível. Elas me reconhecem, de imediato, tapando seus rostos com aqueles farrapos imundos apressando seus passos para uma direção oposta à minha e em meio à nevoa elas somem. Volto a acelerar, levemente, o carro com a mão em meu peito dando seguimento ao meu sombrio passeio noturno.
Próximo à alameda, todos os semáforos dispostos ao longo de seus cruzamentos piscam de maneira coordenada, num pulsante tom amarelado, refletidos na neblina. Assim como as luzes dos postes, apenas a piscadela dos sinais é visível. Aquela via está vazia e nada nela me chama a atenção, senão um único letreiro luminoso com os dizeres “Hell Station”. Sobre este, vejo uma entrada que dá acesso a uma escadaria. Eu estaciono meu carro a poucos metros e me dirijo ao local, cuja entrada - agora consigo ver com clareza - é guarnecida por um corpulento e alto homem, loiro, de rosto pálido, vestindo calças jeans e uma jaqueta de couro preta fechada até o pescoço. Ele olha para mim dos pés à cabeça e abre um sorriso, malicioso, como se autorizando minha entrada da mesma forma como que advertindo meu acesso. Eu desço a escada a medida em que a luz se enfraquece e um som de música eletrônica se intensifica a medida em que adentro. É uma longa escada. Ao seu fim, ainda devo percorrer um longo e largo corredor. Vejo raios de luzes advindos deste corredor, ao me aproximar do seu fim. Estou, agora, numa espécie de bar ou boate, com muitas criaturas dançando e entrelaçando seus corpos ao ritmo frenético daquela música. Vejo as criaturas se beijando e logo cessando suas trocas de afagos para me olharem passar. Elas me encaram por breves momentos e, imediatamente, retomam à ardência de seus recíprocos toques. As andrógenas criaturas a minha frente abrem caminho, enquanto a passos firmes e constantes, por entre elas, avanço com a mão em meu peito. Algumas delas ficam imóveis e me encaram, direcionam seus corpos contra o meu em sinal de desafio, abandonando tal postura ao reconhecerem quem sou. Ao fim da pista e ao lado de um balcão de bar, atendido por uma linda criatura, de cabelos longos lisos e platinados, vejo uma porta enorme de ferro. E nela, eu bato três vezes, quando uma portinhola se abre, percebo olhos cor de âmbar me flertam por longos segundos. Sem haver a troca de uma só palavra, ela se fecha e imediatamente a grande porta é aberta. E por ela eu passo.
Então me deparo com um grande salão, cuja orgia de corpos domina o lugar. Enormes lamparinas com fogo, bruxuleantes, dispostas nos diversos cantos iluminam aquele ambiente de sensualidade e prazeres proibidos. Um forte cheiro de sangue toma conta de meu olfato, na medida em que avanço. Uma mesa está desocupada e nela tomo o assento. Aos meus flancos, as demais mesas são ocupadas por demônios de todas as espécies, os quais muitos deles ignoram minha presença e continuam a saborear suas bebidas, sanguinolentas, em cálices de metal.
Na mesa onde estou, surge uma serpente em seu tampo que se ergue e se esguia sob minha fronte ressonando seu maléfico silvo. Eu não me movo, assim como, não demonstro medo. Ela, então, desliza sobre o tampo e sobre meus braços postos nele, descendo para o chão e se distanciando. Mais à frente, há um palco onde uma sensual criatura faz sua performance, ao som de músicas entoadas por vozes que não identifico suas origens. Aquela criatura feminina, de pele clara e estatura média, veste um vestido sensual branco, onde suas atraentes pernas estão a mostra assim como seus seios por seu formoso decote e pela transparência de suas vestes. Seus longos cabelos cacheados e castanhos emolduram um rosto lindo, cujos olhos grandes e vermelhos desnudam sua natureza. Ela se insinua, rebola suas generosas ancas, acaricia seu corpo com suas próprias mãos. Então, ela olha diretamente para meus olhos e deixa sua longa língua bifurcada escorregar até a altura de seu umbigo recolhendo-a, imediatamente, sob um sedutor e tenebroso sorriso. Um copo de água me é servido pelo garçom, uma criatura demoníaca de pele azulada e pequenos chifres vermelhos com um afável sorriso, demonstrando ser, dentre tantas almas amaldiçoadas, naquele lugar, uma que não ofereceria repulsa, muito menos perigo.
Contemplo aquele ambiente, onde pares belzebúticos se entregam a prazeres carnais, sobre as mesas ou pelos cantos daquele salão. Risadas em tom alto são ouvidas, bem como gritos de lamúria e desespero, advindos de salas sem portas acessadas ao fundo daquele salão. São almas, sendo dragadas por aqueles malditos e arrastadas para aquelas galerias diante de suas fragilidades, logo deduzi. Eu termino de beber a água daquele cálice, sem medo algum e me dirijo para a saída, onde novamente tenho meu caminho aberto com a mão em meu peito, por entre desejáveis corpos nus de aspecto feminino, deitados pelo chão devido ao constante torpor sexual.
De volta ao meu carro, sigo adiante por aquelas ruas cada vez mais escuras e amedrontadoras. Paro em um dos semáforos ainda ativos, e na esquina contemplo, sobre a calçada, duas formas femininas atraentes, acavaladas sobre um corpo estendido ao chão, que aparenta ser de um homem. Ao perceberem minha presença, ambas olham diretamente a mim denunciando suas bocas babadas de sangue, assim como seus salientes e amedrontadores dentes caninos. Uma delas pula por sobre o corpo estendido e vem ao encontro de meu carro, batendo fortemente seu rosto contra o para-brisa, agora sobre o capô dele. Ela sorri malevolamente para mim, acariciando com suas longas unhas o vidro a sua frente, num sinal claro de intimidação. Com a mão no meu peito, a afasto. Percebo então que, de fato, aquele corpo estendido assediado por aquelas corruptoras criaturas era de um homem, mas que não estaria desfalecido estando a desfrutar de um inexplicável prazer carnal com elas. Os três corpos, então, retomam à felação e aos beijos recíprocos.
Sigo em frente, quando noto o som trepidante da sirene e a luz vermelha oscilante, cada vez mais próxima, de um giroflex. É um carro da polícia que me aborda. Dessa viatura policial desce uma criatura aparentando ser um homem negro, alto e caracterizado pela farda policial. Sem trocar uma única palavra, ele me encara com seu cenho fechado, batendo levemente com o cassetete na janela do carro. Noto seus olhos de cor azul bem claro e, uma leve luz fluorescente que o envolve. Ele imediatamente me reconhece, me acena com apenas os dedos médio e indicador abrindo um largo sorriso, retornando imediatamente à viatura que parte em alta velocidade, sem trocarmos sequer uma palavra. Eis mais uma peça do eterno e inacabável jogo de xadrez, responsável pelo equilíbrio das coisas no Universo. Sim, nem todas as criaturas da noite são maléficas. Alguns as chamam simplesmente de anjos.
Após mais algumas quadras abaixo, surge a entrada de um beco. Diminuo a velocidade do carro e vejo, ao seu fundo, vários vultos sobre a penumbra onde a luz dos postes não consegue chegar. Paro o carro na esquina e adentro a pé naquele lugar. Vejo um pelotão inteiro de criaturas em forma, totalmente alinhados em postura militar de costas para o acesso à rua principal. Diante deles, outra criatura demoníaca, quieto e silencioso, também em posição de sentido demonstrando ser o superior daquela horda de desaventurados. Ao passar lateralmente por eles, vejo que não se importam ou, simplesmente, não percebem minha presença. Observo atentamente a todos eles, todos são iguais: usam uniforme militar, com botas negras de cavalaria e jaquetas de cor cinza e botões fechados até o colarinho. Seus rostos são brancos, porém totalmente enrugados de forma que até mesmo seus narizes e queixos venham a ser imperceptíveis.
Não consigo visualizar seus olhos senão apenas por traços em seus rostos, que identificariam o local de suas orbitas. São almas enfeitiçadas e iludidas nas quais em certo momento deixaram de lado sua empatia e altruísmo, crendo cegamente nas ordens de seus superiores. Definitivamente escolheram uma suposta virtude equivocada para abraçarem, vendendo de forma barata, suas essências de vida e espírito. Algo já visto na história do mundo.
Em determinado momento, seu comandante ergue o braço esquerdo com o punho cerrado sendo correspondido com o mesmo gesto por todos. Ao baixar o braço, imediatamente as criaturas volvem-se em seus calcanhares iniciando uma marcha silenciosa pelo beco até sua saída, acompanhados por seu líder logo atrás. Eles somem pela bruma noturna dobrando à esquerda da via principal. Eu os acompanho na saída do beco, uns 5 ou 6 metros atrás. Ao chegar na saída do beco não mais os vejo. Assim, retorno ao meu carro.
Sinto-me cada vez mais gelado. A hora mais fria da noite se aproxima: 5h da manhã. Arranco com o carro em direção ao subúrbio da cidade. Na periferia, já longe da estonteante urbanização do centro da cidade, me deparo agora com construções mais simples e iluminação mais deficiente. São casas e prédios baixos em sua maioria, quando espaçadas por terrenos baldios. Num desses, visualizo um grupo de entidades envoltas em túnicas brancas, ajoelhadas em círculo, de frente para uma imensa fogueira ao centro. Paro o carro e vou ao encontro delas a passos calmos e lentos. Ao me aproximar delas, de forma sincronizada como num movimento perfeitamente ensaiado, todas se viram para mim demonstrando estarem com máscaras também brancas que cobrem toda a face, todas iguais. Coloco minha mão ao peito e todas igualmente voltam à posição original, iniciando um movimento de balanço de seus corpos de modo pendular. Ao me aproximar de uma delas, ela estende sua mão me oferecendo uma caneca de bebida. Noto que sua mão é esquelética, deduzindo que aqueles corpos eram meros esqueletos envoltos em suas mortalhas. São almas perdidas em seus inúmeros arrependimentos tardios, que por algum motivo não mais possuem a capacidade de sentir frio, dor, sabor ou qualquer outra sensação carnal. Recuso a bebida, sem precisar trocar palavras e a caneca é passada para a criatura a sua direita que repassa para a outra a sua direita também. Ninguém bebe daquele objeto. Ao fazer toda a volta, o objeto é tomado pela última das criaturas postas naquele círculo que despeja seu conteúdo na fogueira do centro fazendo com que as labaredas dobrem de tamanho, em fração de segundos. Logo após, essa mesma entidade joga-se na fogueira sendo seguida por todas as demais, num gesto claro de desespero para a contenção de suas atormentadoras dores. Em vão. As criaturas retornam da fogueira com suas vestes em chamas e aos gritos, não de dor, mas de aflição, demonstrando que, nem mesmo o fogo é capaz de acalentar seus tormentos. Elas somem ao longo da rua, dispersando-se ainda em chamas na escuridão através de várias de suas vielas.
Novamente, retorno ao meu carro em direção a um dos cemitérios da cidade, a poucas quadras dali, quase nos limites da cidade. Diante do seu portão, estaciono e desço do carro para nele adentrar. Imediatamente identifico várias criaturas, todas elas empoleiradas e acocadas sobre túmulos novos. Suas aparências são de gárgulas, desfiguradas com forma animalesca e selvagem. Ao me verem, algumas param o que estão fazendo e outras não. Estavam à procura de novas almas a disposição, àquelas que ainda não descansaram e sequer chegaram ao purgatório, cujos corpos recém foram postos à disposição dos vermes da terra. Ao longe, vejo algumas criaturas arrancarem almas das sepulturas envoltas em luzes fosforescentes, sob seus protestos na forma de gritos de súplicas. Todas elas almas ruins, pessoas más que recentemente morreram. As gárgulas, são demônios, se alimentam dessas almas que morreram sem arrependimento algum. Uma delas, numa postura de ataque canino e de cima de um jazigo, demonstra querer me atacar. Ao saltar em minha direção, coloco minha mão sobre meu peito. Aquela criatura, assim como todas as demais próximas, corre para o interior soturno do cemitério como um cão ao ouvir um estampido de arma de fogo.
É hora de ir embora. Volto ao carro e dou rumo ao meu lar. Basta por essa noite, pois creio já ter visto o suficiente.
- Bom dia, Dona Sandra.
- Bom dia, Padre Heleno. Mais uma noite de insônia?
- Sim, mais uma noite sem dormir direito.
- Não está sendo fácil parar de fumar, não é?
- É verdade. Minha ansiedade fica incontrolável.
- Mas é tão difícil assim padre? É necessário o Sr. sair nessas madrugadas frias assim?
- Creio que sim, Dona Sandra. Ao menos por enquanto.
- Bem, se isso lhe acalma... Mas, não é apenas a ansiedade, não é padre? Tem alguma coisa que lhe chama a atenção na noite. Algo que o Sr. Vê ou sente, sei lá. Não é mesmo?
- Sim, muitas. Mas acredite, só eu consigo vê-las.
- Como assim, padre?
- Desígnios de Senhor, Dona Sandra. Vejo coisas que somente eu consigo ver ou sentir, bem como a Senhora diz.
- Mas, por que o Sr. sempre veste sua estola para sair à noite?
- Digamos que eu me sinto mais seguro.