Valery entrou pela porta dos fundos em sua casa. Eram seis horas e ela queria tomar banho, mas o calor ainda estava intenso; havia ainda uma certa claridade. Então ela preferia tomar banho um pouco mais tarde, talvez umas sete ou oito horas, pra não suar outra vez. Deu uma leve olhadinha pra trás, no quintal de casa. Viu que flores e acerolas começavam a surgir e que logo as mangas ficariam maduras também… Sorriu, entrou em casa e fechou a porta. Não estava contente, tinha acabado de perder uma oportunidade de emprego, além do que ela já tinha como bibliotecária. Ela não precisava do dinheiro daquele serviço. Mas era uma coisa que ela simplesmente amava fazer e agora ela voltava pra casa sabendo que não o faria. “Migalhas… Migalhas…”, sussurrou enquanto andava pelo corredor escuro.
Valery não era medrosa… Não entrava em casa e saía ligando todas as luzes que encontrava. Ligou apenas a luz do banheiro e tomou um banho rápido. Às vezes acendia apenas a do corredor, com receio de pisar num escorpião ou algo assim. Queria esticar as pernas… Se sentou em frente a televisão tentando entender se estava triste ou não. Na verdade estava, sim. E muito. A diferença é que ela estava sentindo uma tristeza resignada. Uma tristeza “madura”… “Adulta”. E tem gente que morre de causas naturais sem amadurecer. Então, sentia um pouco de orgulho também. É uma tristeza em que você simplesmente sabe que não vai morrer e que eventualmente vai passar. “Migalhas… Migalhas… Pra eles nem tem valor e eles tem sacos e sacos de migalhas… Eu só queria um feijãozinho daquilo…”. Assistiu alguns capítulos de CSI e se levantou. Queria ir pro quarto trocar de roupa, vestir a coisa de tecido mais fino que encontrasse no armário, deitar na cama, talvez conseguir ler duas páginas ou três, de um livro Stephen King que estava muito bom, mas ela sempre começava a leitura morrendo de sono… Foi quando viu o borrão no corredor.
O corredor era dividido em duas paredes e uma delas Valery enxergava borrada como se a vida fosse uma pintura e tivessem atirado água nela. Além disso, das paredes, saíam… “coisas”… “coisas que se moviam”. Pareciam-se com galhos pretos de árvores. Mas se mexiam como se fossem dedos agonizantes. Os galhos ali cobriam toda a parede e teto. Era como uma casa antiga abandonada em que a natureza começa a invadir o concreto. Valery levou muito tempo (horas talvez) pensando na possibilidade de estar sofrendo algum tipo de ilusão. Ficou tentando se lembrar de todas as bebidas que tomou durante o dia e se alguém lhe ofereceu alguma delas. Não era nada disso. “Então, posso ser esquizofrênica…”, “ou… estou tendo um surto psicótico”, “alias… devo estar dormindo! É isso!! Estou dormindo no sofá do quarto!
– Não estou. – Falou em voz alta. – Quem eu quero enganar? – Tentou dar um passo a frente, sua perna se bateu com força contra o nada. A dor aguda e excruciante foi como se tivesse metido o joelho na quina de uma mesinha. Mas não havia nada ali. Esticou os braços com cautela, como quem testa uma teoria. A mesma barreira invisível a impedia de passar pro outro lado da casa. “E se eu voltasse a dormir? E deixasse isso pra amanhã? Migalhas… Migalhas foram tiradas de mim, eu não tenho nada pra fazer amanhã… Quase nada.”.
– Será que é isso?! Me condenaram a viver metade de minha utilidade em todos os aspectos da vida? Eu tenho sexualidade, mas não tenho um homem… Então, eu me masturbo. Eu tenho um emprego de meio período, então… Eu tenho meia-casa. Todos os dias tenho insonia porque na verdade não preciso de oito horas de sono, só preciso da metade. Largo sempre a comida no prato e acabo dormindo no sofá porque sinto… metade de uma fome?! Migalhas, migalhas… Me deram migalhas, mas EU NÃO PEDI migalhas. E agora querem tomar metade de minha casa?! Eu não paguei por metade dela…
Valery mais uma vez foi até lá… Olhou aqueles “galhos” e toda aquela penumbra anuviada do outro lado da barreira invisível que a impedia de acessar a sala e o outro quarto. O quarto onde ficava o computador. O computador com o programa… O programa com todos os livros da biblioteca catalogados. Seu trabalho. Não sabia o que fazer, será que havia vida naquilo?
– EIII!!! Ei! … eiii… Meu Deus do céu… EEEEEEEEEEEEEEEEEEIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!!!!!!!! (os vizinhos vão reclamar…) Shhh!!!!! – Fez para si mesma. Se tiver algum espírito, entidade, ser da floresta, qualquer coisa… Olha, eu eu preciso do resto da casa…!
– …
– …
– Nada?! É que eu preciso do meu COMPUTADOR!!!
– “Perco o computador, perco outro emprego… amanhã de noite tento entrar em casa e não consigo… perco toda a casa… – Valery ficou parada em pé, em frente ao corredor. Estava chorando e não tinha notado. As lágrimas desciam livremente pelo seu rosto. Como se fosse algo natural, como uma cachoeira. Sem nariz entupido e soluços. Sem gritos, sem respirações fortes… Um choro triste mas ao mesmo tempo, nem tão triste assim que fosse algo de dar tanta pena. Um choro… “Pela metade”.
“Há uma barreira invisível entre mim… e o resto da história.” (O escritor).
– Migalhas... Migalhas...