O ciclo contínuo das almas

Na cama despertei, em morada desconhecida; ergui-me sentindo estranha, envolta em preocupação. Seria a ressaca tão avassaladora que me conduziu a este lugar? Ao deixar a casa, imersa em pensamentos, pairava a incerteza sobre a familiaridade daquele lar; nada recordava, nem mesmo o meu nome. Contemplei o horizonte, avistando apenas terra e distantes pubs solitários. Aquela morada singular que me encontrava, estava em meio à vastidão. Mas que local seria este?

Decidi dirigir-me a um dos pubs; certamente encontraria alguém lá. No entanto, ao longo do trajeto, vislumbrei figuras indistintas, seguidas por outras, e mais algumas simultâneas. Imediatamente afastei-me delas, ocultando-me atrás de uma imponente rocha, observando atentamente o local por onde as figuras transitavam. Uma barreira parecia separar os mundos, até que as figuras deixaram de ser indistintas; meus olhos passaram a discernir pessoas transitando entre aquele lugar e outros tantos. A barreira desvanecera; meus olhos percebiam uma multidão de almas indo e vindo, aparentemente a caminho do trabalho ou realizando suas atividades cotidianas.

Aproximei-me de um transeunte e questionei sobre o local em que estava, porém não obtive resposta. Em seguida, uma mulher quase esbarrou em mim sem me perceber, passando diretamente através do meu ser. Fiquei atônita. Seria eu um espírito? Ao tentar esbarrar em outras pessoas, meu corpo também as atravessou. Eu estava verdadeiramente intangível.

Como assim, eu sou um espectro? Ontem mesmo eu estava... bem, eu não me lembro. Lembro-me de falar, ler, escrever, mas nada específico sobre minha vida. Sei que sou mulher, ou talvez nem mesmo isso. Vi um espelho na realidade das pessoas que andavam, como se os dois mundos estivessem entrelaçados, o reflexo de um ecoando no outro, vislumbrava ambos sem foco definido. Ao olhar para o espelho, meu reflexo não surgiu. Entrei em pânico, debati-me, gritei alto, tanto que pensei que ficaria rouca, mas não ficava, pois eu era um espectro, desprovido de carne e osso. As lágrimas que brotavam possivelmente eram fruto da imaginação, e os gritos, apenas eu os ouvia, talvez porque não eram reais, ao menos não no mundo dos vivos. Isso me enfurecia, e eu não cessava. Um espírito não se cansa.

Sentada no chão, as pessoas passavam por mim, e eu não parava de pensar "se sou um espírito, por que não lembro de nada? Por que em minha mente eu tinha certeza de ser uma pessoa comum?". A resposta estava clara: eu era uma pessoa comum, falecida e agora aqui, no reino dos mortos. Deve haver muitos espíritos aqui com quem posso esclarecer minhas dúvidas. Preciso encontrar esses seres.

Retomei a jornada em direção ao pub, vendo-o como se pertencesse a este mundo; a expectativa de encontrar outros como eu era grande. Cheguei à entrada e um sorriso brotou em meu rosto. Ouvi vozes vindas de dentro e, sem hesitar, abri a porta, sentindo-me contente ao fazê-lo, provando que aquele lugar pertencia a este mundo; do contrário, minha intangibilidade com coisas do outro mundo não me permitiria abrir a porta.

Adentrei e vislumbrei algo que acalmou meu coração; o pub estava repleto de espectros, claramente distinguíveis graças às cores fracas de seus corpos, quase transparentes como eu mesma quando observo minhas mãos e todo o restante do meu ser. Contudo, uma tristeza inesperada me invadiu. Todos ali pareciam zumbis, movendo-se sem expressão, sem uma palavra sequer. Antes de entrar, tenho certeza de ter ouvido vozes; mas agora penso: como pude ouvir? Talvez minha mente tenha projetado os sons que eu desejava ouvir; talvez tenha sido enganada por ela mesma.

Tentei falar com alguns deles, mas resposta não obtive; tentei encostar, mas a minha intangibilidade estava também entre eles. Não podiam me ajudar, nem sequer me ouvir; imagino que não podiam ouvir ninguém, nem uns aos outros. Estavam todos em um estado deplorável, eram apenas almas em movimento. Aquilo me deixou extremamente desconfortável, triste e pensativa. Será que eu iria me tornar um deles se eu continuasse nesse lugar?

Retirei-me do pub e vaguei sem rumo; apenas caminhei e caminhei. Queria chegar a um lugar que me desse respostas; precisava saber quem sou, por que vim parar aqui, ou se sempre habitei este lugar e apenas perdi a memória. Continuei a andar por horas; o sol estava se pondo e cheguei a algum lugar. À beira do penhasco, olhei para baixo e lá estava o mar.

A vista era tão satisfatória. Não pensei em seguir outro caminho e andar mais, queria apenas apreciá-la por algum tempo. Sentei-me e tentei esvaziar minha mente para apenas apreciar, mas isso durou por alguns segundos; era impossível esvaziar todo aquele turbilhão de pensamentos, era impossível não pensar na falta de respostas e no que presenciei naquele pub. Estava assustada, com medo, precisava de alguém para conversar; ver as pessoas, mas não ser vista, falar, mas não ser ouvida, ficar sozinha em um mundo estranho sem saber quem sou, não é agradável.

Nesse mundo, alguém como eu, alguém que pudesse me ver, existia; o contrário disso não faria sentido. Deitei e o sono tomou conta de mim. Não sabia que almas pudessem sentir sono, mas isso me deixou alegre. Fechei os olhos e lá estava eu, sozinha, dormindo em um mundo desconhecido.

A claridade do sol me fez acordar e abrir os olhos; já era de manhã. Estava melhor do que ontem; uma noite de sono ajuda a relaxar a mente. Levantei-me e algo flutuando veio em minha direção. Era uma alma tão transparente que cheguei a questionar se o que via era real ou se eu estava fora de minha sanidade mental. Parou em frente; vi seus olhos me analisando por inteiro. Finalmente alguém podia me ver; isso me deixou aliviada e ao mesmo tempo com medo.

— Desculpe a demora da minha chegada; há muito trabalho para poucos funcionários. Eu sou um guia de almas, muito prazer. Eu vou te dar os detalhes da sua purificação. Talvez você não esteja entendendo nada, mas você é uma alma em processo para retornar ao mundo de onde veio.

— Muito prazer, senhor Guia. Eu não entendi nada mesmo; purificação de que? Eu realmente morri? Que lugar é esse, de fato? Pode me dizer ao menos quem eu sou? — disse eu, extremamente desconcertada.

— Aqui é o lugar aonde as almas vêm depois da morte de seus corpos, mas cada alma fica em uma realidade diferente, ou seja, você não vai encontrar alguém aqui com quem possa criar algum laço afetivo. Obviamente, consegue ver essas almas de outra dimensão que estão em processo de purificação, porém, não consegue realizar nenhum modo de comunicação. Você está sozinha. Só eu posso te ver e te ouvir. As almas chegam aqui sem lembrança imediata de seu passado em outra vida e ficam aqui por um determinado tempo, até se purificarem e assim reencarnarem em outros corpos e voltarem para o outro mundo. Você é uma alma; não tem nome, não tem sexo; foi criada há muito tempo para dar vida a um corpo e reencarnar indefinidamente. Agora, lhe mostrarei quem você foi na sua última vida.

Após essas palavras, o Guia levantou seus braços; o tempo começou a voltar como se estivesse rebobinando uma fita cassete e parou. A história da minha vida começou a passar diante dos meus olhos e lembranças começaram a aparecer na minha mente.

A casa onde acordei ontem de manhã era a casa em que nasci. Me chamava Alice e nasci no ano de 1915. Fui uma criança normal, como qualquer outra, amava meus pais, meus irmãos, brincava a todo momento e era bastante extrovertida. Na adolescência, me apaixonei e me iludi, fui a festas, como todos os adolescentes, e o mais importante, tanto na adolescência quanto na idade adulta, trabalhei muito para realizar meu sonho. Tinha o desejo de ser uma cantora reconhecida por todos e trabalhava incansavelmente por isso. Fazia shows todos os dias em pequenos pubs para ter mais visibilidade. Fazer três shows por dia não era nada difícil de acontecer. Estava indo bem, as pessoas gostavam do meu trabalho. Nesse meio tempo, me casei e tive uma filha. Aos 27 anos, minha filha tinha 5. Vivia uma vida feliz, e com o meu sonho mais perto do que nunca, estava quase conseguindo shows em ambientes maiores, onde teria uma maior visibilidade.

Tudo poderia ter dado certo se eu estivesse vivendo em outra época. Viver em um período de guerra, onde você era considerada uma pessoa inferior por países que invadiam sua região, era deplorável. A minha vida e da minha família foram viradas de cabeça para baixo; nosso objetivo era sobreviver, e para isso trocávamos de esconderijos de tempos em tempos, até a chegada do ano de 1943. Neste ano, fomos encontrados pelos invasores de nossa nação; nossas vidas foram separadas e o trem que levava a um lugar de miséria, destruição mental e carnal, estava à minha espera.

Fui obrigada a trabalhar por uma migalha de pão, minha desnutrição me levou a doenças que jamais conheci. Estupros eram recorrentes para mim. Meu sonho havia mudado; uma cantora de sucesso já não queria mais ser, apenas minha filha queria rever. Mas de nada adiantava, daquele lugar, eu jamais sairia com vida, e assim foi: a minha morte chegou em um dia normal enquanto eu trabalhava. Minha desnutrição, espancamentos e noites não dormidas me levaram ao fim da vida.

O Guia abaixou os braços e todo o ambiente voltou ao seu estado normal; eu estava chorando, lembrava de cada detalhe da minha vida carnal. Perguntei a ele o que deveria fazer para voltar e me reencontrar com a minha pequena menina.

— O processo de purificação é simples: você lembra de quem você foi e escolhe, com sinceridade, voltar para o mundo carnal. Nesse mundo, não existem almas boas ou más, só existem almas. O que você fez no outro mundo pode ser considerado bom ou ruim para eles, não para nós, então o processo para voltar é igual para todas as almas. Mas é importante saber de alguns detalhes, é necessário ter conhecimento para que o processo de purificação ocorra. Poderá voltar como uma boa pessoa, com uma vida feliz, poderá voltar como alguém que sofrerá a vida toda, como alguém que morre ao nascer ou como alguém que trará sofrimento alheio. A sua volta é aleatória. Existe a possibilidade de reencontrar a sua filha, ou ao menos a alma que está no corpo dela, porém nunca irá saber quem ela era, tanto que também nunca irá saber quem você já foi. Você não será você. Outro fato que deve ser explicado: poderá voltar no ano em que nasceu, no ano em que morreu, poderá voltar a 2 mil anos antes da sua última vida ou a 2 mil anos depois da sua morte. Existe a possibilidade da sua alma, vinda de outro tempo, ser a alma que estava no corpo de seu marido, por exemplo. O tempo em que irá voltar também é aleatório. E o mais importante, pode escolher não voltar e ficar aqui, para eternidade, como um espírito vagante. Pode considerar que ficando aqui, estará no paraíso, pois não sentirá dor ou tristeza. Por outro lado, pode considerar que está no inferno, pois não sentirá nada, nem sequer uma única emoção, um único momento de felicidade.

Aquelas palavras me deixaram confusa. Queria voltar para o meu mundo, mas sendo quem eu sou, caso contrário, não faria sentido. Não faria sentido voltar como outra pessoa em uma possível época de terror, voltar para sofrer como eu sofri, para sofrer ainda mais, ou para causar sofrimento alheio. Um turbilhão de pensamentos roda na minha mente, não conseguindo ter um único pensamento claro.

— Meu trabalho com você está feito, agora a decisão é sua — disse ele e desapareceu como uma espécie de mágica.

Existem uma infinidade de dimensões, para que cada espírito possa ficar em uma, ou será que existem poucos espíritos, já que podem ir ao mundo em qualquer período do tempo; podem estar com eles mesmos em tempos carnais iguais, mas em tempos de espírito, diferentes. A minha filha pode estar agora em processo de purificação, na verdade, podemos ser uma mesma alma, em tempos diferentes, assim como meu marido. Acho que estou ficando louca, não sei o que faço ou o que penso.

Quando me dei conta, já estava a quilômetros de distância do penhasco. Horas deviam ter se passado, pois o sol já estava se pondo. Esse lugar parecia uma cidade mal-assombrada, é como se estivesse caído uma bomba, toneladas de TNT e destruído alguns quilômetros de extensão. Lá estavam milhares e milhares de espíritos. Espíritos em formatos de crianças, adultos e idosos; eles estavam parados, e isso é o que mais me chamou atenção. Os espíritos que havia visto no pub se movimentavam como zumbis, mas esses não tinham um movimento sequer. Observar toda aquela destruição, sabendo que, de alguma maneira, aquilo havia acontecido no mundo carnal, a tristeza, mais uma vez, tomou conta de mim. Qual sentido de voltar para esse mundo macabro.

Continuei a caminhar e cheguei a um local idêntico ao que vi a minha menina e meu marido pela última vez. O nosso último esconderijo. Logo percebi que aquele lugar estava apenas na dimensão carnal. Eu conseguia observar perfeitamente, mas como a visualização das dimensões são juntas, um pouco de confusão visual é normal.

Fiquei nervosa, observei que estava ocorrendo o momento da minha captura, eles me levaram para o trem, meu marido foi levado para outro lugar, fora de onde eu conseguia observar, e minha filha gritou e gritou, mas de nada adiantou. Dois soldados tiraram sua roupa, naquela rua vazia, a estupraram e espancaram até seu coração parar de bater. Seu corpo foi jogado e foram embora.

Aquela visão deu espaço para outra, onde meu marido já estava idoso, nisso pude ver que ele sobreviveu aquele horror; estava feliz, casado, com filhos e netos. Fiquei feliz por ele, a vida tinha que continuar e continuou.

Me sentei em uma rocha ao lado e nesse exato momento visualizei o espírito de minha filha bem em minha frente, parada, olhando para frente, sem mover um só dedo. Estava exatamente como todas as pessoas da cidade fantasma. Paralisada.

Chorei, gritei seu nome, tentei abraçá-la, mas era em vão. Lembrei das palavras do guia: "nenhum tipo de comunicação". Ela estava no mesmo processo que eu, do mesmo modo que eu a via parada, sem se mover, estava tentando falar comigo, mas apenas podia me ver paralisada, sem mover um só fio de cabelo.

Não podia saber o que ela estava pensando ou sentindo, porém, depois de certo tempo ao seu lado, observando-a, algo ocorreu. Seu espírito começou a se despedaçar, virar pó e sumir pelo horizonte. A única conclusão desse fenômeno é que ela teria aceitado a sua reencarnação após a minha presença diante de seus olhos.

Espíritos, cuja última vida foi de uma criança, têm uma maior facilidade de aceitar o desconhecido, aceitar a viver e ser um outro alguém. Espero que seu espírito encontre paz nessa nova vida.

Para mim, escolher voltar é mais difícil, não apenas por ser quem não sou, mas voltar a um lugar onde a presença de ódio é incalculável, não faz mais sentido para meu espírito. Tenho minha decisão sincera, não purificarei a minha alma, ficarei aqui para toda eternidade.

Quando me deparei, estava junto de milhares de outras almas. Não sinto amor, ódio, tristeza, afeto ou mesmo solidão. Não sinto nada. Sou uma alma que apenas existe, junto de outras almas cuja escolha foi ficar. Juntos, andamos para lá e para cá, como zumbis.

Não existe céu e nem inferno, o que existe é o ciclo contínuo de almas que vêm e vão até um possível fim de mundo.

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Conto publicado na antologia "Réquiem: Preces para os mortos"

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