A COBRA QUE SE MEDIA

A COBRA QUE SE MEDIA

Autor Moyses Laredo

Lendas Amazônicas

Contam os antigos que as cobras não podem ser animais de estimação. Os indígenas nunca têm cobras xerimbabos. Na Amazônia, a conexão das crianças indígenas com animais, como papagaios, araras, cotias, bicho preguiça e macacos, quando de criação, todos vivem soltos nas aldeias ou, na mata vizinha. É respeitosa a relação e cheia de brincadeiras, principalmente dentro e no terreiro das malocas. É comum se vêm esses animais como bichinhos de estimação, os chamados por eles de xerimbabo pendurados nos braços, ombros e pescoços de crianças indígenas..., mas com cobra, nunca se viu, jamais! Eles sabem que esses ofídios, mesmo os sem peçonha não são domesticáveis, porque seguem seus instintos primitivos de predação, embora bem tratados e alimentados regiamente com suas presas preferidas, constituídas de ratos, camundongos, sapos etc, mais cedo ou mais tarde, elas se pronunciam, principalmente depois que trocam, pela terceira ou quarta vez suas peles. Essa troca de pele das cobras é chamada de ecdise, ou muda. Trata-se de um processo necessário para o crescimento do animal tão peculiar e exótico, o mesmo que acontece com os crustáceos, que deixam suas couraças quando já não lhes cabem em razão dos seus desenvolvimentos. Já os ofídios quando atingem a maior idade, é desse ponto em diante que seus instintos são aguçados, não reconhecem seus “donos” (como se houvessem se afeiçoado algum dia), e falam mais alto, porque a lei da reprodução e sobrevivência está impregnado no seu DNA, também entram no modo predador.

Contam que uma senhora inglesa, dirigente de uma Ong, que atuava nas comunidades carentes da Amazônia, em viagem a serviço com o seu velho Land Rover pelas estradas do interior, se deparou com uma cobra albina atravessando languidamente a estrada de terra batida, era um animalzinho de uma beleza exótica e incomum, realmente sem igual, suas escamas além de brilharem ao sol, também mudavam de cor aos seus movimentos, com nuances de verde, vermelho e amarelado, criando um furta-cor (iridescência) muito singular. Embora ainda pequena, a cobra encontrada, tinha cerca de 120 cm, estimaram com base na jiboia que criavam no Centro, que ela poderia ter entre 1 a 2 anos, quase um bebê como chamou a senhora. Esse animal encantou a todos da equipe. Ao se informar com o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) para ver se poderiam adotá-la, souberam tratar-se de um píton albino (píton-albina PYTHON BIVITTATUS) Seu habitat é a Amazônia, a Mata Atlântica e áreas abertas como Pantanal e Cerrado. Sua maior ocorrência é na América do Sul. O píton albino pode viver até 40 anos, e chegar a atingir oito metros, pesando cerca de 80 quilos em fase adulta. Os pítons não possuem presas, são constritoras, mas sim dentes inclinados para trás e não são peçonhentas. Essa foi a melhor notícia para a senhora inglesa que descartou o que mais temia, ser picada!

Depois das providências legais, pois a senhora de pronto, resolveu adotá-la, acomodou-a no Centro, lhe deu um lugar de destaque, o seu próprio quarto, ou seja, passou a dormir no quarto com a senhora inglesa. Todos os dias, a senhora a exibia em suas reuniões, por ser dócil e meiga, punha-a em volta do pescoço como um cachecol, isso emprestava mais respeito e carinho aos animais, assim ela achava. O laço de afetividade foi se estreitando ao ponto de a cobra dormir na cama da senhora, inclusive quando chegava a noite, ela se arrastava serpenteando a procurava do seu canto da cama e lá ficava enroladinha até o dia raiar. Apenas uma vez a cobra não quis dormir junto com a senhora, descobriram que ela tinha repulsa ao odor da lavanda que a senhora havia usado, depois dessa descoberta não mais usou lavando e a cobra voltou a dormir na cama, em seu antigo lugar. O técnico vizinho de quarto, que sempre dormia apreensivo, pediu o vidro de lavanda para si, alegando ter “adorado” o perfume.

O tempo foi passando e a cobra crescendo e engrossando, agora, seu comprimento já passava dos 2,20m com uma circunferência de 65cm o que equivale a 20cm de diâmetro e muito pesada. O seu rolo na cama já abarcava um bom espaço, isso era um orgulho para a senhora que se dizia ser sua dona. Um dia, repentinamente, a cobra passou a recusar alimentos, os ratinhos postos para sua alimentação até chegavam a brincar diante dos olhares indiferentes da cobra, sem, contudo, serem incomodados. Passados quatro semanas a cobra não dava sinal de querer comer nada, coisa que se repetia invariavelmente a cada duas semanas. A senhora se informou que a frequência recomendada para alimentar um filhote de cobra costuma ser de uma vez a cada 10 a 15 dias, já na fase da juventude. No período em que as cobras estão amadurecendo e passam a precisar de cada vez menos energia, por isso comem menos. Intrigada a senhora, entrou em contato com o veterinário que a acalmou dizendo que era normal essa falta de apetite, mas que a partir dos dois meses, deveria ser agendada uma consulta para que o veterinário apontasse a doença que a cobra estaria acometida. A cobra cada vez mais começou a se comportar de modo estranho, ela não mais se enrolava no seu canto, simplesmente ficava totalmente na horizontal paralela à sua dona quando deitada, era um hábito de todas as noites, esse estranho comportamento, a senhora interpretava como uma demonstração de carinho, ao ver a cobra daquele tamanho se perfilando ao seu lado. O que mais intrigava a senhora, era somente a falta de apetite da “sua” cobra, o fato de ficar ao seu lado já não lhe causava nenhuma estranheza.

A notícia da sua cobra com fastio já era de conhecimento de todos no Centro, o que fez com que chegasse aos ouvidos de um velho pajé que morava numa reserva bem próximo. O velho ficou abismado quando ouviu o relato, ele que conhecia os segredos da mata e dos animais melhor do que qualquer veterinário, pediu que a senhora fosse vê-lo com urgência, pois pressentia mal presságio naquele simples fato da cobra se espichar ao lado de sua dona. A notícia reverberou logo na senhora, que prontamente atendeu ao chamamento do pajé, que era bastante conhecido e quem atendia a todos daquela região, com remédios caseiros à base de plantas medicinais, fruto da riquíssima cultura milenar indígena.

Ao chegar na maloca onde o velho indígena habitava, notou a simplicidade de sua morada, não tinha luz elétrica e nem mais outro conforto além de sua velha rede de tucum encardida. À meia luz, aproximou-se ficando de pé diante do velho xamã ou pajé, aquele que guia os rituais xamânicos. Ele é considerado como o mensageiro ou o intermediário entre o mundo terreno e o mundo espiritual, é quem entra em estado de transição para fazer essa comunicação. Com seu cachimbo (petyngua) aceso, espalhando fumaça no ambiente, pois é com esse instrumento, ideal para o chamamento e contato com os encantados, estalou os dedos e surgiu um banco de palha de tucum estrela trazido por um auxiliar e posto ao lado da mulher, a qual sentou-se imediatamente. O velho se levantou arrodeou a mulher e sem nada dizer, foi contando o que os encantados estavam a lhe dizer.

Kuñã, (senhora) disse o Xamã, a sua cobra parou de se alimentar para conseguir mais espaço em seu expansivo estômago, assim, consegue digerir o que ainda tem residualmente no estômago, como também, expelir as gorduras e outros elementos indesejáveis no seu interior para dar lugar a algo bem maior. Ao se espichar do seu lado, ela na verdade está simplesmente se medindo para ver se a senhora já cabe no seu estômago. Ao ouvir isso, a senhora quase teve um ataque, só deu tempo de ouvir as últimas recomendações do xamã que lhe disse em tom bastante ríspido, “NÃO DURMA MAIS COM ESSA COBRA, tire-a do seu convívio imediatamente pois ela está se preparando para lhe engolir”.

Molar
Enviado por Molar em 10/08/2024
Reeditado em 12/08/2024
Código do texto: T8126193
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