A paixão de Christian

Os fundos do meu apartamento de um quarto, davam para os fundos do apartamento de um quarto do outro lado do poço de ventilação do prédio, e assim, volta e meia, eu ouvia a minha vizinha cantando no chuveiro. Christian, soube depois, era o nome dela. Um nome antigo e pouco usual para uma mulher, mas Christian não era exatamente uma pessoa comum.

- Você realmente gosta de cantar no chuveiro, não é mesmo? - Atrevi-me a dizer certa vez em que a encontrei na portaria, apanhando a correspondência, depois de voltar da minha caminhada matinal na praia. E como ela me encarasse intrigada, estendi a mão e me identifiquei:

- Elias Parry, seu vizinho do outro lado do poço de ventilação.

- Oi, Elias - ela apertou a minha mão e sorriu. - Christian. Christian Bonser. Já você, nunca ouvi cantar. Aliás, é difícil saber que está em casa, nunca ouço barulho algum.

- Já tem gente suficiente fazendo barulho nesse prédio, e eu procuro respeitar o descanso de quem trabalha à noite - justifiquei-me. - Hoje estou em trabalho remoto, mas já houve épocas na minha vida em que virava as madrugadas.

Ela me lançou um olhar malicioso ao ouvir o comentário.

- O que você fazia? Segurança de boate?

Tive que rir.

- As pessoas se enganam com meu físico; minha área é automação bancária.

- Pois se fosse segurança, a boate em que eu trabalho lhe contrataria - ela assegurou muito séria, me estendendo um cartão que retirou da bolsa que levava. E antes que eu perguntasse, ela complementou:

- Eu canto lá; apareça qualquer noite.

Olhei para o cartão. Era de um clube noturno na Península, o "Batiscafo".

- O repertório tem a ver com alguma coisa que você já tenha cantado no chuveiro? - Indaguei, enquanto ela guardava a correspondência na bolsa e se preparava para sair à rua.

Com a mão na maçaneta, ela me encarou com seus imensos olhos verdes amendoados e disse:

- Não, o que eu canto aqui é só para relaxar...

Acenou, e saiu do prédio.

* * *

Mais tarde naquela noite, resolvi ir conhecer o "Batiscafo". Era um lugar de aparência modesta, numa rua pouco movimentada depois do horário comercial, e, como seria de esperar, frequentado principalmente por sereianos.

- A Christian me convidou - declarei para o rapaz sereiano na entrada, exibindo o cartão de visitas.

- Você vai gostar - afirmou ele, me dando um tapinha nas costas.

Lá dentro, a iluminação era difusa e o fumo estava liberado, o que me pareceu um contrassenso. Mas a clintela que ocupava metade das mesas do pequeno salão parecia não se importar; quanto aos sereianos, imagino que recuperassem suas energias mergulhando nas águas escuras da Península, depois da noitada. Sentei-me numa mesa próxima do palco e uma garçonete aproximou-se para anotar meu pedido.

- Kombucha e salada de wakamé - solicitei. - E a que horas Christian canta?

- Depois das 11 - ela assegurou. - Falta pouco.

O pedido chegou no momento em que Christian surgiu no palco com uma lira de casco de tartaruga nas mãos. Acenei, e ela me concedeu um sorriso discreto, sentando-se num banco alto para iniciar seu repertório. O qual, como percebi pouco depois, era composto inteiramente de canções sereianas; do tipo que, provavelmente, eles cantam em suas cidades submersas, e das quais metade das frequências passam batido pela nossa limitada percepção humana.

Outro dos efeitos das canções sereianos é mexer com nossa percepção de tempo. Quando percebi, o show havia acabado e o salão já estava praticamente vazio. Christian pareceu materializar-se ao meu lado.

- Mesmerizado é a palavra - declarei para ela.

E olhando ao redor:

- Ainda tenho que pagar a conta, e nem sei se o caixa está aberto!

Ela pôs a mão no meu ombro e sorriu:

- Você foi tão gentil em me esperar terminar, que essa fica por conta da casa.

Olhei para ela, intrigado:

- Isso não foi planejado, pode ter certeza. Eu simplesmente não vi o tempo passar.

- Mas já que está aqui, e vamos para o mesmo lugar, que tal me acompanhar? - Sugeriu ela.

Chamei um aplicativo e voltamos juntos para o prédio. Antes de nos despedirmos e seguirmos cada um para o seu apartamento, ela indagou:

- Amanhã, à mesma hora?

Alguma coisa acontecera naquelas horas em que a minha mente parecera ter se desligado do corpo no "Batiscafo". Decididamente, uma parte de mim ainda devia estar por lá, e eu sabia que jamais me sentiria completo se não voltasse.

- Amanhã, à mesma hora - assenti.

Pela manhã, ouvi Christian cantar. Agora, ela soava como uma pessoa perfeitamente normal, mas eu sabia que ela tinha o poder de evocar tempestades, correntezas e profundezas de água escura e fria. A mim cabia ficar na margem, esperando pelo dia em que ela pudesse me pegar pela mão e me levar em segurança através do seu reino.