A sombra do antigo inquilino
Mudamos de casa, uma casa tão grande que eu poderia ter dois quartos só para mim, já que meu irmão não gostava de dormir sozinho e ficava no quarto da minha mãe. Não estava acostumada a ter tanto espaço, então resolvi deixar o quarto de cima como um quarto de TV e de estudos, deixando o quarto embaixo da escada para dormir.
Na primeira noite que dormi naquela casa, percebia que ela era mais fria do que o normal. Deitada ali no meu quarto no escuro, com a luz da escada iluminando o corredor e a porta do meu quarto, passei a ouvir passos de alguém pesado descendo a escada. Passos pesados, como se fosse alguém muito grande. Os degraus daquela escada em espiral improvisada, feita de cimento, rangiam a cada passada. Aquela área da casa não tinha acesso para outros cômodos e somente eu estava ali. A cada barulho de alguém que não fazia parte daquela realidade, eu firmava meus olhos para o corredor. Quando a sombra foi aumentando, eu simplesmente cobri a cabeça em uma atitude inútil de tentar me esconder de algo que claramente não deveria estar ali.
Os passos foram se aproximando, e eu sentia a presença de um homem de frente à porta do meu quarto. A porta, que estava entreaberta, foi aberta com extrema violência, se chocando com a parede em um baque seco. Aquela figura caminhava até os pés da minha cama e parava.
O medo tomava conta de mim e eu me lembrei na hora de todas as lições de catequese, fazendo todas as rezas e em um pedido silencioso de ajuda, eu orava para aquela presença ir embora. Ali, em meio àquela meditação, entre uma oração e outra, eu engolia um grito seco. Aquilo se repetia quase todos os dias, até que eu decidi não cobrir a cabeça e ver o que me perturbava toda noite. Cada vez que a figura aparecia, a realidade parecia se distorcer um pouco mais, como se o tempo e o espaço estivessem se curvando ao meu redor tentando me levar para uma realidade que não era minha, talvez tentando trocar de lugar comigo para se sentir vivo novamente.
Mais uma noite chegava e novamente a sombra desceu as escadas e fez o mesmo ritual, batendo a porta com tanta força que já havia feito um buraco na massa corrida da parede. Encarando a porta, esperei o que estivesse fazendo aquilo aparecer, cara a cara com o que quer que aquilo fosse, não aguentava mais me sentir acuada sem poder me defender e nem ver o que ameaçava atacar. Tomada por uma efêmera coragem juvenil eu decidi esperar sem cobrir o rosto, sem me esconder, só os vivos poderiam fazer mal eu pensei.
A figura bateu a porta e eu pude ver o que era: uma sombra inteiramente negra, sem olhos, nem boca. Sua pele, roupas, tudo era feito de escuridão. Eu sabia que era um homem pelo formato do corpo. Sentia meus olhos querendo fechar para não ver aquilo, meu cérebro tentando aceitar o que via, e minha boca se movia, falando com uma voz baixa e rouca, perguntando quem era ele e o que queria.
Se aproximando de minha cama abrindo um buraco negro no lugar que seria sua boca e com uma voz tão grave, saída das profundezas de algum lugar que desconhecia vida humana, disse: "Saia da minha casa, essa casa é minha!"
Nesse momento, a sombra fechou os punhos e socou a parede. A mesma começou a rachar, serpenteando no concreto, uma abertura que contornava as paredes daquele pequeno quarto, abrindo como se fosse a tampa de uma caixa. Tudo escureceu e me vi sentada em um terreno com uma casinha ao longe. Minha cama fazia contraste com aquele lugar, iluminado apenas por uma distante e fraca luz de lampião presa na porta de uma casa. Podia sentir o cheiro de mato molhado pelo orvalho da noite, sons da natureza faziam trilha sonora para aquele cenário. Caminhando até a casinha no meio daquele grande terreno, abri a porta e encontrei um homem grande sentado em uma cadeira de balanço. Ele fumava um cachimbo, suas roupas eram simples e se notava que fazia parte de outros tempos. Ao se aproximar dele, o mesmo segurou forte meu braço e com um olhar vazio abriu a boca e repetia a mesma palavra: "Minha casa, minha casa, saiaaaaa."
Puxei meu braço com força e saí correndo. Era só um pasto sem nada, e eu correndo sem direção, olhando para trás para ver se não estava sendo seguida por aquele homem. Na fuga, me choquei com uma grande árvore e caí no chão. Ao abrir os olhos, estava de volta em minha cama, minha casa. Sabia que tudo aquilo era real pela marca que ele deixou quando apertou meu braço. Esfreguei em uma tentativa de apagar tudo o que tinha acontecido, mas a marca continuava lá. Foi real o que vivi. Acabei fazendo minhas malas e passei a morar com uma tia. Os quartos ficaram vazios, e pouco tempo depois minha mãe decidiu se mudar. Nunca soube quem era aquela aparição e porque ele me escolhera para gritar e me expulsar da casa que claramente não era nem minha e nem dele. Aquela figura inumana estava presa em algo que somente ele via uma realidade contorcida entre o que foi e o que era. Nunca pôde descansar e queria ficar sozinho, com os vivos o incomodando.