Relatos De Um Embrião

Oi, o meu nome é Ulisses. Não nos conhecemos, sou um personagem. Estou completamente aturdido e, confesso, até mesmo um pouco apavorado. Talvez a única coisa boa nisso é que você, leitor, não pode me cobrar uma escrita perfeita. De fato, escrevo mal e pouco. Se bem que essas duas coisas tenham uma profunda relação. Quem escreve mal, geralmente é porque escreve pouco. E também suspeito - embora não tenha sido consultado a respeito - que quem não costuma dedicar-se a boas leituras não consiga escreva nada.

Dizia eu, estou aguardando o meu autor. Algo perturbador aconteceu ontem à tarde, bem no momento em que ele decidia fazê-la me atacar com a setença: "Até mesmo as plantas mais insuspeitas florescem". Ora essa, não me interesso por plantas. Muito menos por flores. Deixo isso para os poetas (essas criaturas desgraçadas que associam muheres a flores). Para mim uma flor é só uma flor e uma mulher é muito mais que uma simples mulher. É algo como uma sequência infinita de pontos de interrogação e exclamação juntos. (!?) Saca? Apenas os poetas se saem com essa. E eu sou um mísero persongem. Pior ainda: um personagem que perdeu o seu autor.

Ontem à tarde, acho que já disse isso. Meu Deus, eu já disse. O cara que se diz (meu) escritor parecia bastante ansioso, "batucando" nas teclas do notebook. Havia uma robusta caneca de chá de gengibre ao seu lado. E aos seus pés, dormindo, a cachorrinha, Pimenta. Ela tem uma boca bastante peculiar. Parece estar sorrindo enquanto dorme. Pimentinha. Linda, linda, a danada. Ele trabalhava, dedicado como um cientista. Coçava a testa, à cata de alguma característica forte. O ouvi murmurar claramente algo como "ciumento". Não, "jumento" não. Foi "ciumento" mesmo que ele disse. Se bem que ciumentos e jumentos tenham muito em comum. E havia uma noiva, Clarice. Era essa mulher me atormentava os pensamentos. A afirmação sobre plantas insuspeitas e os sucessivos infinitos pontos de exclamação e interrogação, lembra? Tem um temperamento forte. É decidida, irrequieta e instável. De tal modo que estou quase convencido de que eu seja um personagem secundário. A esse respeito, inclusive, careço de mais detalhes. Aparentemente, para o bem ou para o mal, tudo está na fase embrionária. Sim, vamos resumir: sou um embrião. Então, pouco me resta senão ficar por aqui, quietinho, esperando o seu retorno.

Foi um telefonema. Ele atendeu com uma voz tranquila. De repente, um murro na mesa e a saída em disparada. "Eis que chega a roda viva e carrega a viola pra lá..."

E agora, eu, sem viola, preciso arrumar um jeito de ocupar meu tempo. Taí: enquanto ele não retorna, vou cantar, digo, contar pra você um pouco do que sei do meu criador. Eu sei que vai parecer um tanto estranho. Um personagem contando histórias sobre seu autor. Uma inversão completa da lógica. Mas o mundo não está mesmo de cabeça para baixo? O negócio é "plantar bananeira" e curtir o momento. Além disso, e talvez para me deixar ainda mais confuso, é bastante comum vê-lo se afirmar um personagem à procura do seu criador. O que me dá aquela sensação de se observar um espelho diante do outro e experimentar aquela sensação entre mágica e aflitiva das suas imagens multiplicadas ao infinito. Pois bem, sobre o meu autor:

Ele jura ser um cara de origem pobre. Segundo o ouço dizer aos quatro ventos, a palavra "empreendedor" foi inventada por causa dele. Em seu primeiro dia de aula no ensino fundamental - há pouco mais de vinte mil dias atrás - estava na penúltima fileira de carteiras, lendo entre os dentes as letras redondinhas da dona Isaura: "São Paulo, 12 de Janeiro de 1976". A professora largou o giz e virou-se bruscamente para localizar a voz que vinha do fundo da sala.

- Quem está lendo?

Talvez pelo ar inquiridor da professora, os coleguinhas que ainda não o conheciam trataram de apontá-lo instantaneamente:

- É ele! É ele!

- É você mesmo? - ela perguntou com incredulidade.

O então menino respondeu temeroso:

- Sim, sou eu.

- Quem te ensinou a ler? - ela não gastava o seu português irrepreensível (Quem o ensinou a ler?) com pirralhos.

- Meu pai.

- Seu pai? Ele é professor também?

- Não senhora, ele é ferroviário. Em casa somos meus dois irmãos e eu... Meu pai comprou dois lápis e os cortou ao meio. Nos dias de folga, ele nos dá as metades dos lápis, aproveita o papel que veio no filão de pão, cortado em quatro partes e vai ensinando o que sabe. Só tive dificuldade com a letra K. A pasta de dentes Kolynos, eu queria escrever "Kaolinos".

Dona Isaura ficou alguns segundos em silêncio. Depois, perguntou à classe se alguém mais ali sabia ler. Diante da negativa, sentenciou:

- Ferroviário, e mestre nas horas vagas... Se todos fossem como o pai dele, as coisas por aqui seriam diferentes... Mas, vamos lá! - e desenhando na lousa um pequeno círculo perfeito, puxou uma "perninha" à direita - Essa é a letra A!

O bichinho tem história pra contar... Aliás, contar histórias é seu passa-tempo preferido. Talvez por isso ele se arvore escritor; gosta de conversa, de ouvir histórias e de reproduzí-las. Criado na beira da via férrea, vive repetindo histórias sobre trilhos, trens, estações, chegadas e partidas. Pensando bem, eu não poderia ter saído de uma cabeça mais encantada. O caso do cachorro... Uma vez ele disse que o irmão mais novo perguntou ao pai se cachorro sabia nadar. E não é que... Espera... Ouvi um barulho na cozinha! É ele! Voltou, finalmente, ufa! Espero que a minha história finalmente seja continuada (e que Clarice faça parte dela). Mesmo louca, creio que a amo. Desculpe, caro leitor, não quero ser egoísta, poderia, sem esforço, contar-lhe centenas de histórias interessantes sobre o meu autor (conquanto ainda não tenha eu a minha própria história); mas, sendo minimamente prático, a minha vida depende dele, e já vou me cansando desse estado "embrionário", por isso me despeço por aqui.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 14/06/2024
Reeditado em 22/06/2024
Código do texto: T8085974
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