Projeto poeta: um conto surreal

Era um daqueles domingos com cara de festa. O ar estava cheio de um zumzumzum e a cidade parecia ter sido tomada por um furor coletivo. Gente apressada, normalmente afogada na preguiça dominical, estava em puro êxtase. E não era pra menos: era o dia do nascimento do poeta!

:

A cidade, um mosaico de personalidades, parecia um circo ambulante. De todos os cantos surgiam figuras inusitadas: artistas de rua, malabaristas circenses, crianças lambuzadas de caramelo, dançarinas divorciadas, doentes desenganados, bêbados excomungados, doutores engravatados e motociclistas tatuados que chegavam em caravanas intermináveis. Tinha de tudo um pouco, como num grande desfile de personagens saídos de um livro do Gabriel García Márquez.

:

No meio desse turbilhão, um grupo de analistas de sistemas, os mais renomados especialistas, se trancafiava em uma sala repleta de computadores. Elaboravam um complexo sistema, com cálculos binários, medindo tempos, sóis e luas. Misturavam o tom azulado do mar com o brilho tênue das estrelas, colhiam gotas de orvalho e captavam brisas, tempestades e calmarias. Na internet, exploravam páginas da vida, da dor, do prazer, da esperança e das fantasias. Baixavam angústias, ideais, desconfianças e melancolias, como se fossem hackers das emoções humanas.

:

Depois de muito trabalho, uniram cálculos, análises, meditações, escrituras e leituras. Programadores, com olhos arregalados de ansiedade, formulavam tudo em planilhas de Excel. Digitadores, convocados às pressas, digitavam freneticamente. E então testaram o sistema... mas nada aconteceu. O programa não rodou. Testaram de novo... e travou. Nada funcionava.

:

Foi o início de uma confusão épica. Como assim, o poeta não nasceu? O que estava errado? Quem era o culpado? O programador descompensado? O digitador apressado? Ou talvez o povo aglomerado? A máquina inoperante? Ou o sol escaldante? Em meio a protestos, surtos e vaias, alguém teve a brilhante ideia de afixar um cartaz:

:

"Vírus no sistema encontrado. Projeto Poeta abortado."

:

E foi assim que a cidade, que estava pronta para celebrar, teve que lidar com a dura realidade digital. O poeta, tão aguardado, foi vítima de um bug. Talvez, numa próxima atualização, o sistema funcione e a poesia renasça. Mas, por ora, ficou a lição: nem tudo na vida pode ser programado, nem mesmo o nascimento de um poeta.

:

[Releitura do meu PROJETO POETA, um conto poesia, publicado no Overmundo quando o mundo ainda era over e não capenga como hoje, em 17/04/2008.

http://www.overmundo.com.br/banco/projeto-poeta]

:

MMXXIV