Pequeno conto de natal
Pequeno conto de natal
Era quase noite de véspera de natal e o menino perambulava sozinho pelas ruas da cidade sem Ter pra onde ir.
Ele não conhecera os pais; não sabia o que era Ter uma casa pra morar. Na verdade nunca tivera nada. Quando se entendera gente já se encontrara morando na rua e nunca mais saira dela. Aqui e acolá, acolá e aqui pedindo esmolas , revirando os lixoes atrs de comida e fugindo dos outros garotos para não apanhar. E agora era mais um natal. Era quando a dor mais doia. Dor de nada Ter. Era quando batia a saudade de um lar que nunca tivera, mas sempre sonhara como devia ser. Já ouvira invejosamente os outros garotos falarem.
O aconchego e o carinho de um lar. Ah Deus! Somente ele mesmo sabia quantos noites passara acordado, sonhando de olhos abertos com um quarto somente seu e abarrotado de brinquedos. Quantas vezes sonhara com uma mae que o levasse até a porta da escola; com um pai que sentasse na beirada de sua cama e contasse estórias até que ele viesse adormecer.
Um lar rodeado de irmaos com os quais pudesse brincar. E nesta família imaginária, quando chegasse o natal, após a ceia todos se reuniriam em volta das luzes de pinheirinho colocado na sala e quando soasse meia noite no relógio da cidade, cada um pegaria o pacote com seu nome escrito e desembrulharia felizes os presentes. Depois que cada um mostrasse ao outro o que ganhara, dariam maos e rezariam pela harmonia, pela felicidade e pela paz no mundo inteiro. Não raras vezes se revoltara pôr não Ter família que tanto sonhava e não entendia as razoes de Deus: ___ Pôr que lhe fora dado uma vida tao cheia de percalcos e obstaculos quase insuperáveis.
Agora já era quase noite e ele cruzava com criancas caminhando felizes ao lado de seus pais. Iam todos fazerem as últimas compras de natal.
Criancas com seus pais escolhendo seus presentes. Uma lágrima brotou em seus olhos porque sabia que aquele carrinho elétrico, cheio de luzes que piscavam e emitiam um apito legal; e que com certeza jamais seria dele.
Puxa! Ele namorara aquele brinquedo o ano inteiro na vitrine de uma loja gra-fina no centro da cidade. Não tinha e jamais teria dinheiro para compra-lo e muito menos alguém que pudesse lhe dar como presente de natal.
Vinte duas horas e trinta minutos, mocas e rapazes que trabalhavam como balconistas, se preparavam para irem embora para suas casas. Dentro em pouco tempo, todas as lojas fechariam suas portas. Todos iam passar o natal junto com suas famílias. Mas e ele? Ele não tinha casa para ir, para voltar, portanto para ele não havia natal. Alguém lhe contara que o menino Jesus nascera numa noite como aquela e uma estrela guiou os pastores até sua manjedoura para lhe ofertar presentes e dar boas vindas pôr Ter vindo ao mundo. O menino Jesus depois crescera e para salvar todos os homens, morrera pregado numa cruz, num sofrimento atroz. Mas ainda o menino Jesus com certeza fora mais feliz que ele, pois tivera pai e mae, e também amigos que vieram visitá-lo quando nascera. Ele nunca tivera ninguém. Lembrava-se vagamente de uma mulher que o arrastava pelas maos enquanto perambulava pelas ruas. Lembrava-se também que a mesma falava consigo mesma em voz alta e acenava para uns e outros que passavam gritando-lhes palavras desconexas. Um dia ao acordar no banco de uma praca, a mulher não estava mais lá. Jamais soubera o que acontecera. Bem depois disso ficara sozinho no mundo. Perambulando pelas ruas da cidade, pedindo aqui, pedindo acolá. Muitas e muitas vezes revirava o lixo atrás de algum objeto de valor, algo que pudesse vender. Já fizera parte de um grupo de criancas que viviam alheias pela cidade, mas o grupo era muito violento e gostavam de humilhá-lo quase sempre com suas brincadeiras esquisitas de chutes, pontapés e xingamentos.
Se afastara desse grupo. Um homem passou fantasiado de papai noel, dentro de um carro. Certamente era algum avô amoroso que ia levar presentes para agradar seus netinhos. Pôr que existia meninos felizes e ricos e outros tao pobres e orfãos como ele?
Quem é que no acontecer da vida escrevia os destinos e destinava papéis tao desiguais? Seria algum Deus? Seria um problema da humanidade?
Quem é que em sã consciência poderia fazer tao infeliz uma crianca?
Quem é que tendo o poder poderia deixar uma crianca ficar sem o carinho e a presenca de uma mãe? Quem é que tendo em suas mãos o poder poderia deixar uma crianca sem a seguranca e a presenca de um pai?
Um poder tao grande não poderia ser usado tao maldosamente. Um poder de escrever o destino das pessoas deveria de ser um poder repleto de bondade, um poder que pudesse fazer da terra um grande paraíso!
Talvez bastasse a presenca de uma mae e sua vida seria diferente. Sim porque com uma mae talvez tivesse para onde voltar aos finais de tarde. Não dormiria na rua, ao relento, ä mercê das intempéries. Mas não tinha mae! Não tinha pai! Pôr que seus pais não o amaram tanto a ponto de fazer qualquer coisa para ficar ao seu lado?
Ao lado de seus pais, moraria numa casinha qualquer, dormiria, se preciso fosse , no chao e seria um menino estudioso e obediente.
Quando crescesse seria um dotutor, um engenheiro, cuidaria de seus pais quando eles ficassem velhinhos. Mas não tinha pais.
O relógio da praca badalara onze horas e ele perambulando descalco e faminto pelas ruas, se fazendo as perguntas que já se cansara de fazer sem obter qualquer resposta. Quando soou meia-noite, fogos de artifícios explodiram em todos os cantos da cidade. No mundo inteiro era natal. Em todos os lugares do mundo as pessoas davam e recebiam presentes naquela hora. Sentou-se debaixo de uma arvore do jardim da praca, colocou os bracos sobre o rosto e os baixou sobre os joelhos. Um nó foi se avolumando em sua garganta, sufocando-o . Se esforcou para não chorar, porém não conseguiu conter as lágrimas. Elas vieram e inundaram copiosamente seu rosto.
Um choro forte, alto e sentido. Muitas lágrimas. Parecia o casco de um navio que arrebentara. Gotas de lagrimas amargas e frias pôr conta de uma realidade crua e dura. Angustiante solidao. Uma quentura comecou a tomar conta de seu corpo. Já conhecia o sintoma. Uma febre estava rondando-o
Comecou a alternar momentos de calor com momentos de frio. Calafrios percorriam sua espinha de alto a baixo. A febre nesse instante era altissima. Todo o corpo formigava incomodamente. Sentia uma sede terrível.
A boca seca não conseguia nem ao menos formar saliva. Estava naquele desespero, quando entao uma dormência estranha, perigosa foi tomando conta dele. Um sono intenso o espreitava. Pôr mais que teimasse em manter as palpebras abertas estas não lhe obedeciam. Parecia que alguém descera uma cortina escura sobre seus olhos impedindo-lhe a visão. As luzes da cidade foram desaparecendo de mansinho. Tudo foi ficando longe, longe, muito longe. Dormiu ali encolhidinho. Despertou com alguém tocando-lhe o braco. Era um homem que nunca vira. Era uma homem moreno, bastante jovem ainda. O desconhecido o tomara em seus bracos e pediu que fechasse os olhos novamente. Obedecera prontamente. O desconhecido comecou a caminhar carregando-o no colo, quando tivera entao a estranha sensacao de que estava voando. Nesse trajeto perdera a nocao do tempo. Não sabia se tinha passado minutos, horas ou dias. Não sabia tampouco se andara ou se voara. Percebera que a viagem tivera fim. Havia alguns instantes que estavam parados. Quando sorrateiramente abrira os olhos, o desconhecido não estava mais ao seu lado. Viera parar, ou fora levado a um quarto de brinquedo igual ao que tantas vezes sonhara. Veio a vontade de pegar um para brincar, mas ficou com receio que o dono aparecesse e achasse ruim. Era melhor esperar alguém aparecer e pedir autorizacao. Depois de esperar bastante tempo e não aparecer ninguém não resistira. Primeiro chutou bola, depois andou de bicicleta, brincou com os indiozinhos em miniatura, cavalgou pelo quarto com um cavalinho de madeira e já se preparava para atirar com um revólver de espoleta, quando ouviu uma voz chamar seu nome lá da sala. Ele abriu a porta do quarto, andou pôr um corredor e chegou até a sala, onde um homem e uma mulher, de aparencia simples, o aguardavam. Tinham o olhar mais carinhoso que até aquele dia ele houvera visto. No centro da sala tinha uma mesa e a o jantar estava posto. Tinha frango, saladas, vinhos, refrigerantes, arroz, suco, peixes, frutas variadas, panetone, sobremesas. Num canto da sala havia um sofá pequeno e duas poltronas. A frente deste tinha um tapete listrado de azul e vermelho. No outro canto da sala estava montado um pinheirinho de natal, cheio de luzes, bichinhos, estrelas, sinos e homenzinhos dependurados. Atrás do pinheirinho se deixava mostrar uma caixa grande, colorida, embalada com papel de presente e escrito o seu nome. Ele já ia sair correndo para abrir a caixa e ver o que tinha dentro. A mulher de aparencia bondosa o interrompeu, pedindo que esperasse um pouco, pois primeiro iriam jantar. Com muito custo ele se conteve. Ao chegar proximo da mulher ela o beijou delicadamente no rosto e o sentou em seu colo. Uma sensacao gostosa de calor o invadiu. A mulher o beijou mais uma vez e o chamou de filho. Ele quase desmaiou. Que revelacao surpreendente! Ela o apertava em seus bracos e lagrimas caiam de seus olhos, molhando inteiramente sua face.
O homem veio se juntar a eles, e os três ficaram abracados, sorridentes entre lágrimas de felicidades.
Passado alguns instantes foram jantar. A comida estava uma delícia. Percebeu que seus pais comiam mais lentamente que ele, e a todo momento paravam para olhá-lo, os dois com os olhos embacados pelas lágrimas.
Ao final da ceia, sua mae fez uma linda oracao, onde agradecia aquele momento de felicidade pelo reencontro com seu filho querido, agradecia aquela uniao tao linda, tao esperada, ainda que tardia e finalizou pedindo para paz para o mundo inteiro. Terminada a oracao ele saiu em desabalada carreira até o pinheirinho para pegar seu presente. Os dois riam da sua pressa incontida para abrir o presente. Quando conseguiu quase desmaiou de emocao. Estava lá dentro aquele carrinho de luzes coloridas com o qual tanto sonhara. O carrinho era seu! Quanta alegria! Pôr dentro ele quase explodiu de felicidade. Correu ao encontro de seus pais e os encheu de beijos, afagos e carinhos. Voltou entao sua atencao para o carrinho que ganhara. Seus pais acompanhavam divertidos a sua tentativa de fazer aquele brinquedo funcionar.
Conseguiu!!! O carrinho rodava feito louco pela sala, acendendo e apagando suas luzes, buzinando alto. Nossa como era legal!!!
Agora ele tinha uma família. Finalmente encontrara a felicidade .
Como era bom Ter um lar. Como era bom amar e ser amado como era agora.
Foi entao que aquele sono, aquela dormencia estranha foi tomando conta dele novamente. Tudo foi ficando longe, longe, muito longe.
Ainda lhe restou um pouquinho de forca, para que com o carrinho entre os bracos, ele foi cambaleante até seus pais e abracando-os lhes deu um beijo de amor e de carinho, naquela noite inesquecível de natal.
Enrodilhou-se ao carrinho e dormiu ali mesmo.
Até hoje comenta o estranho caso de um menino de rua que amanhecera morto, numa manhã de natal em uma praca da cidade, ostentando um sorriso angelical em seu rosto, abracado a um carrinho barulhento, cheio de luzes, que misteriosamente com as pilhas descarregadas continuava funcionando.
Dedico este pequeno conto de natal aos meus queridos filhos Ináh e Ayrton, na intencao de que eles nunca se esquecam da necessidade do espírito de amor e solidariedade, não só no natal, mas em todos os dias do ano.