O Mal
Desafiando o domínio muçulmano, solidamente encravada nos limites cristãos sobre a Europa Oriental, encontrava-se uma fortaleza de grandes muradas.
Baluarte da fé em Cristo, único e legítimo Senhor, ostentada pelo poder de nobres, que jamais mediram esforços para encher seus cofres de dinheiro e, masmorras, de escravos, em nome de Deus. Antiga como a guerra, ousada como o desafio e grande como a ambição, rechaça os avanços de homens de pele escura e olhos de lobo, de falsos deuses e fanatismo sem par.
Seu corpo, sua alma, tinham por imagem seu atual e mais valoroso dirigente — um homem de barbas brancas e impiedoso machado.
Canta-se que sua bravura e selvageria já lavaram os muros com o sangue inimigo e sua gargalhada possante elevou-se acima dos zunidos das flechas e chamas, lançadas sobre sua alva cabeleira.
Numa das infindáveis manhãs de calor, poeira e suor, uma das sentinelas avistou um solitário cavaleiro de vestes vermelhas, vindo do Leste. Surpreso com a visão, fez soar o alarme...
Parado em frente ao grande portão, o estranho despertou curiosidade nos soldados. Seu porte altivo denunciava certa nobreza. Suas armas eram diferentes das usadas pelos filhos de Maomé, seus inimigos. Trazia junto ao corpo uma urna de madeira antiga recoberta com motivos de bronze.
Quando rudemente arguido por um dos guardas sobre suas intenções, o cavaleiro apenas ergueu uma das mãos e levou o indicador aos lábios, fazendo sinal para que o soldado se calasse. Confuso, o soldado finalmente fitou os olhos do estrangeiro. Sua mente simplória não pode compreender toda extensão do saber ou da tristeza daquele olhar. Porém, imediatamente reconheceu o mal que emanava daqueles olhos, dominando, penetrando em seu ser.
Suas mãos apenas se ergueram e a urna lhe foi entregue. O estranho partiu e apenas a poeira e o som de gargalhada foram deixados como registro de sua visita.
O objeto foi levado à presença do marquês, que, curioso para saber seu conteúdo, perguntou ao soldado, que nada revelou além da ignorância de seu olhar. Irritado, abriu a urna e surpreendeu-se com seu conteúdo...
Ali estava uma grande taça de prata rústica semi-preenchida com sangue e coberta por um véu de suavidade e leveza impossíveis de serem tecidos por mãos humanas. Ele retirou o véu com a ponta de sua adaga e viu o que estava encoberto. A cabeça decepada de seu inimigo mais terrível, general muçulmano contra o qual batia-se a longo tempo. Chamou-lhe atenção curiosos detalhes: a cabeça te os olhos arrancados e em seus lugares haviam papoulas cuidadosamente colocadas nas órbitas vazias. A boca, o nariz, os ouvidos e até a parte cortada do pescoço estavam costuradas cuidadosamente.
O velho conquistador jamais imaginaria que este horrível ritual, posto a efeito pelo não-nascido, tinha por objetivo aprisionar a alma da vítima no corpo, fazendo-a sofrer as injúrias, o desespero e o esquecimento da podridão a cada minuto, até o fim de sua não-vida.
Junto com o presente, vinha o pedido de abrigo ao exército do valoroso guerreiro que presenteara ao marquês.
O Mal caminhava entre os homens naquela terra.
Houve comoção dos nobres com o desconhecido que se aproximava.
Omnis belli Mars communis. (Em todas as guerras, a sorte é igual para todos)