O SINISTRO CUBÍCULO ESCURO

JOEL MARINHO

Quem passou pela rua da delegacia na cidade de Sobrado Velho naquela noite ouvia os gritos copiosamente do jovem Arthur Calixto de apenas 25 anos de idade, porém com um histórico muito longo de internações no pequeno posto de saúde ali existente com problema de falta de ar e um medo incontrolável. Como ali havia poucos recursos e apenas um médico generalista que atendia a pequena população uma vez por mês, Arthur ficava contido pela própria família muitas vezes por semanas esperando uma consulta e os remédios para acalmá-lo.

O rapaz ficou conhecido pejorativamente como “Doidinho de Sobrado Velho”, sua fama se espalhou por lugares bem longínquo daquela região a muito tempo quase totalmente esquecido pelo serviço público e até mesmo pelas igrejas, pois nem pastor, nem padre, nem sequer um pai de santo queria ir para lá, viviam, como dizia a dona Conceição, mulher mais antiga do local e fundadora da cidade com 89 anos, “pela misericórdia de Deus”.

Já com 25 anos de idade Arthur não recebera nenhum tipo de diagnóstico, sabia-se que ele entrava em pânico quando entrava em contato com o escuro e quarto fechado. Logo isso também lhe gerou a alcunha de outros termos pejorativos por conta da ignorância daquele povo, o chamavam de “frouxo, frescurento, mimado” e outros termos mais pesados.

Cresceu com uma fobia imensa de escuro e uma mente altamente atormentada até que naquela fatídica noite acabou matando toda a sua família em um de seus ataques de fúria, após ficar transtornado por sua mãe o obrigar a entrar no quarto e em seguida fechar a porta “prendendo-o”.

Ensandecido, Arthur começou a quebrar tudo dizendo que estava sendo sufocado e perdendo a respiração. Em uma das diversas tentativas conseguiu derrubar a porta com um chute. Livre do quarto pegou uma faca e partiu para cima do pai que tentou em vão contê-lo. Em seguida atacou a mãe com cerca de trinta facadas e suas duas irmãs mais novas fazendo um derramamento de sangue mais terrível na história daquela cidadezinha.

Os gritos estridentes acordaram toda a vizinhança que o cercaram até conseguir desarmá-lo e contê-lo enquanto os dois únicos soldados que guarneciam a cidade chegaram para levá-lo a prisão na minúscula cadeia a qual continha apenas duas celas pequenas e no momento da prisão de Arthur havia apenas dois presos por arruaça devido ao abuso de álcool, cada um em uma cela. Tanto Luiz quando Joaquim se recusaram a ficar na mesma cela com Arthur e foram dividir uma das celas até serem liberados pelo delegado Ronaldo, este ia apenas uma vez por semana a cidade para fazer um relatório e soltar os arruaceiros. Aquele era de fato o primeiro crime chocante da cidade, em mais de 50 anos de existência.

Ao ser posto na cela e com o apagar das luzes Arthur entrou em pânico outra vez gritando desesperado dizendo que ia morrer por falta de ar e se debatendo contra as grades. Seus gritos eram ouvidos a cerca de um quilômetro de distância dado o silêncio da noite, logo nenhum vizinho próximo conseguiu mais sossegar.

A comoção tomou conta de todos e a cidade de Sobrado Velho entrou em luto e pânico por não saber como agir com aquele menino o qual todas as pessoas acima de 40 anos de idade tinham “visto” nascer. Todos se perguntavam como uma criança aparentemente tão educada havia se transformado naquele “monstro” capaz de matar toda a sua família?

O delegado Ronaldo acionou uma equipe de investigadores de outra cidade a fazer uma diligência investigativa no intuito de desvendar toda aquela raiva repentina de Arthur. Além dos policiais foram também uma equipe de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais.

As buscas começaram pela vizinhança, sobretudo os mais próximos na tentativa de desvendar como fora a criação de Arthur desde criança, mas em vão houve qualquer indício de que sua educação tenha sido negligenciada. Seu genitor, também de nome Arthur era, segundo os vizinhos um pai e marido exemplar e sua mãe Marinalva era amorosa e cuidadora sem igual dos filhos e do marido. Os policiais reviraram toda a casa e nada foi encontrado que desse indício de uma infância dolorida, como os psicólogos indicaram de início essa possibilidade.

Seu Arthur, apesar de uma vida pacata e simples era dono de um espaço de terra um pouco abastada, para uma pessoa daquela região já era um homem de certa posse, dando aos seus filhos as possibilidades de uma boa vida de acordo com aquele contexto.

Foram dias de investigações e nenhuma fagulha acendeu no sentido de levar os policiais e toda aquela equipe a descobrir qualquer irregularidade e quem sabe apontar um possível diagnóstico ao rapaz, enquanto isso ele havia sido transferido para uma outra cidade e colocado em um hospital psiquiátrico tomando alguns remédios, porém contido, pois todas as noites ele acordava aos gritos e com falta de ar.

Sem ter nenhum sucesso a equipe voltou, resolveram encerrar o caso e levar Arthur a um tribunal para que fosse julgado pelo crime bárbaro o qual cometeu. Entretanto, um dos psicólogos mais experientes, Reginaldo ficou muito intrigado com toda aquela história e passou a estudar outros casos semelhantes pelo mundo sobre fobias e ataques psicóticos. Até aquele momento ninguém tinha ido até Arthur tentar um diálogo com ele, pois depois do ocorrido não conseguiu mais falar com ninguém, emitia apenas gritos e palavras desconexas.

Reginaldo então resolveu investir em um contato mais próximo com Arthur. Mesmo não conseguindo nenhuma fala percebeu uma certa aceitação no olhar do rapaz, logo passou a pedir que fizesse desenhos e escrevesse sobre qualquer coisa que pudesse lembrar desde sua infância.

Arthur era excelente em desenhos e muito bom em escrita, assim passaram a se corresponder por cartas e desenhos que Arthur entregava todas as quartas feiras ao psicólogo. Enquanto isso sua saúde foi aos poucos sendo reestabelecida.

Em uma quarta feira Reginaldo recebeu de Arthur um desenho de sua casa e um longo caminho que levava até um cubículo no fundo do terreno dos seus pais. Dentro desse cubículo havia uma espécie de pequeno quarto e vários instrumentos de torturas mais parecido com aqueles usados no período inquisitorial.

Quando Reginaldo abriu o desenho ficou bastante intrigado. Em seguida abriu a carta na qual havia uma estrutura muito diferente com as diversas já recebidas, nela havia apenas uns riscos, uma espécie de labirinto e no final apenas uma palavra: “AQUI”!

Intrigado com aquilo o psicólogo procurou seus pares para analisar o desenho e a “carta” de Arthur, além disso acionou a polícia com um pedido de nova diligência até a antiga casa do rapaz, mas não foi atendido, pois o delegado alegou falta de pessoal, mas na verdade havia de fato era falta de interesse no caso.

Reginaldo resolveu ir sozinho até o local do crime com aquela espécie de “mapa” lhe guiando e não foi difícil encontrar o caminho descrito no desenho. Subia-lhe um arrepio à medida que caminhava rumo ao desconhecido. Chegou ao fim do caminho e lá havia um pequeno túnel que ia suavemente descendo por cerca de 20 metros, logo uma porta quebrada. Pensou em voltar, mas a curiosidade era bem maior que o medo.

Um quarto totalmente escuro sem nenhuma incidência de luz. O psicólogo parou por alguns instantes observando cada centímetro naquela entrada quando se deparou com um interruptor. Acionou-o, uma luz acendeu para seu desespero. Havia diversos instrumentos de tortura onde Arthur pai torturava física e psicologicamente o filho e a esposa.

Desesperado Reginaldo volta em pânico, pois aquele lugar era tão sinistro que até os não claustrofóbicos entram em desespero e falta de ar. Saiu dali em disparada e voltou imediatamente a cidade onde estava Arthur. Ao chegar acionou a polícia que foi até o local constatando a fala do psicólogo.

Ao falar com Arthur pediu que o escrevesse tudo, pois havia descoberto o quarto sinistro. Pela primeira vez depois dos assassinatos o rapaz chorou copiosamente como se tivesse desabado em si um sintoma de culpabilidade. Pegou um caderno e uma caneta e se debruçou na escrita.

“Não sei o que de fato me aconteceu naquela noite, mas lembro de poucas coisas como os gritos de minha mãe e da minha irmã caçula pedindo para eu não as matar, eu não queria as matar, porém aquela maldita voz gritava em minha cabeça, mate esses malditos quando cheguei em pânico e minha mãe me prendeu no quarto!

Mas a minha desgraça aconteceu quando eu tinha 5 anos, um dia o velho Arthur descobriu por alguém que eu não era filho biológico dele e quando chegou em casa pressionou a minha mãe, inclusive batendo nela para falar a verdade, sob pressão ela falou que eu tinha sido um erro, pois ela se apaixonou pelo irmão de Arthur e acabou engravidando.

A partir daquele dia o maldito Arthur passou a me tratar como bicho e construiu aquele cubículo onde me torturava e me mantinha preso por horas, as vezes por dia ali. Não adiantava gritar e me desesperar, ninguém iria ouvir a não ser minha mãe que sabia de tudo, porém não podia dizer nada, vez ou outra ele a trancafiava lá também, mas ele sempre manteve esse jeito de paizão em público, inclusive nos levando todos os domingos à missa como uma família feliz.

Nem vou descrever o que ele fazia com minhas irmãs, é desumano até falar, basta o meu sofrimento.

Naquela noite ele me deixou enclausurado no inferno do cubículo, eu gritei tanto que perdi a voz e comecei a chutar em meio a escuridão até conseguir derrubar a porta, então cheguei em casa transtornado e com a voz falando para eu matar a todos. De pouca coisa me lembro, só lembro de ter acordado aqui nesse hospital psiquiátrico amarrado pés e mãos com os outros contidos me chamando de assassino. Eu não sou assassino! Aliás, nem sei mais quem eu sou, nem sei nem se sou ou se fui alguma coisa algum dia. Estou pronto para ser julgado e condenado por meus crimes, mas por favor, não me deixe no escuro e nem em locais apertados, se assim for condenem-me a morte, pois só de pensar naquele quarto sinistro já me sinto sufocado”.

Sem mais, Arthur Calixto

Após essas descobertas Arthur foi julgado e absolvido, porém teve que ficar sob supervisão o tempo todo por profissionais da psicologia e psiquiatria em uma casa de repouso psiquiátrico permanente até sua morte aos 50 anos de um ataque cardíaco fulminante enquanto dormia.

Após esse sinistro caso a cidade de Sobrado Velho, sua população passou a olhar com mais carinho para as questões psicológicas quebrando em parte o velho paradigma de que transtorno mental é “frescura”.