Neon
Tinha fome do mundo.
Entenda: não era gula, mas insaciabilidade. Talvez, por isso, precisava preencher-me da mais corrosiva e deleitosa perversão. Uma Bovary, senhores, a pior delas — eis o que sou.
Do mundo colorido, de saias curtas e croppeds bem apertados, das luzes neons vibrando nos letreiros dos bares, do cigarro que, minutos antes de tocar nossos lábios, foi bolado por diversas mãos, do desejo constante pelas silhuetas sublimes cujos movimentos faziam meus maxilares rangerem, do rouge na tez, tirava daí o sustento para a outra metade de minha alma. Me deleitava com aqueles ermos por toda a madrugada e sentia o desejo de que vida fosse assim e que, daquele momento, embora passageiro, pudesse haver uma transformação na ordem natural das coisas, transpondo aquela áurea para a outra realidade, a do cotidiano.
Que trocassem tudo! De que importa? Amanhã seria outro dia: e se nessa inversão das coisas o cansaço sobremaneira viesse como no passado havia vindo, o que fazer? Não era isso mesmo a vida? Cansaço!
E seu eu varasse aquele anormal mundo inteirinho às avessas para todo o sempre, me pergunto se isso seria de todo bom. Por isso lhes digo das duas metades de minha alma; a primeira, já conheces; a segunda, não a direi — por acaso um bom livro se revela inteirinho na primeira leitura?