Multicores
Mal retiraram a gase do olho direito e o branco marfim que prevalecia nas paredes do quarto da clínica se descortinou. Zé Luís não conteve o choro. Tão emocionado estava com o que lhe parecia impossível há alguns meses atrás: voltava a enxergar. O milagre tomava contornos mais precisos conforme iam descobrindo o olho esquerdo.
Dava para ver, em nitidez surpreendente - entre outras coisas - um pequeno recipiente de álcool gel, o aparador básico próximo da porta, a garrafa de água gaseificada que algum dos visitantes esquecera ali e, pela janela entreaberta, a parede desbotada do prédio vizinho, que num dia bem distante deve ter sido laranja. Agitou-se um pouco, tentando ficar sentado. A enfermeira o desencorajou:
- Melhor não. Só um pouquinho mais de paciência! Em alguns minutos o doutor Fernando passa e, se Deus quiser, libera o senhor hoje mesmo.
José Luís se conformou, embora não fosse de sua natureza. Mas estava no lucro, ponderou. Quando o socorreram, logo após a explosão, suas chances eram mínimas. Não apenas de voltar a enxergar, mas de continuar vivo! A pequena fábrica de produtos químicos foi quase toda pelos ares levando consigo a metade do quarteirão. A liberação de gases tóxicos causou enormes danos ao aparelho respiratório e aos olhos do então gerente do controle de qualidade. Ficou totalmente cego por três semanas inteiras. E tal era a gravidade do seu caso que, desenganado pelos médicos, indistintamente amigos e familiares foram liberados para visitas e manifestações religiosas.
Então a reviravolta: o primeiro milagre, a fantástica reação dos pulmões que ninguém soube explicar. E junto desse progresso viu também melhorar a situação orgânica geral. A cicatrização das queimaduras, a normalização da função renal e hepática. Um bom tempo depois, uma tímida recuperação da visão. Vultos, sombras, fachos de luz. Fizeram testes. Decidiram por uma cirurgia de transplante das córneas. Então, o segundo milagre: fatores favoráveis possibilitaram o procedimento em menos de dezoito meses após o acidente. Nesse intervalo de tempo, Zé Luís precisou se adaptar a várias restrições que não são difíceis de se imaginar quando consideramos uma pessoa que, de uma hora para outra, perde a visão completamente. Desde o menor deslocamento dentro de casa até o desespero completo na impossibilidade de gerar renda, somada à mais básica dependência dos mais próximos. Próximos que recentemente dependiam dele.
Mas agora sim, a vida voltaria ao normal! Tudo estaria nos eixos de novo, com o período difícil finalmente superado.
- Senhor José Luís Sampaio Galante... Olha só! Nome de gente importante... de presidente, ahn!? - brincou o médico.
- Bom dia, doutor! Posso ir pra casa? - perguntou o paciente, em sua secura característica.
- Espero que sim, só preciso fazer um último exame!
O médico abriu sua maleta e de lá tirou um instrumento, uma espécie de capacete flexível, cheio de lentes. Cuidadosamente colocou-o em Zé Luís, conectando-o ao seu notebook por meio de alguns cabos. Durante o procedimento franziu a testa, expressão que aos poucos se transformou numa careta sutil. Coçando a barba, balançou a cabeça negativamente.
- Alguma coisa errada doutor?
O médico agora apertava o lábio inferior com os dedos indicador e polegar.
- Não... ... ... Errada não... Faz o seguinte, esse é o meu telefone. Vou te dar alta, você vai pra casa - tentou sorrir, imprimindo otimismo à fala - Vai pra casa! Vida que segue, normal. Qualquer coisa, pode me ligar.
O homem ia completar dez dias da alta quando percebeu algo estranho: olhando contra o Sol, a película de Insulfilme do carro, na garagem, era distorcida por uma espécie de efeito furta cor. A sensação apenas somava um desconforto crescente, que já dera pistas em outras esquisitices. O episódo da camiseta do genro: marrom, quando ele teimava que fosse verde. As frutas na mesa, que a sua percepção das cores distorcia de forma incessante. Não apenas as laranjas haviam se tornado azuis, como os pêssegos agora eram roxos e as uvas amarelo-fosforescentes. E as cores iam assim, sofrendo transformações caóticas, flutuando aleatórias, escapando dos objetos, como que por uma viagem alucinógena.
Houve um episódio, ele se lembrava vagamente, teria lido em algum livro, há muito tempo... numa passagem da história, a protagonista, sob efeito de substâncias químicas, experimentara uma alucinação conjunta com uma amiga, onde a cor vermelha de um balde, em sua casa, saiu do objeto e ficou voando sobre suas cabeças. Aquela descrição nunca saiu da sua cabeça.
A esposa tentava acalmá-lo:
- Deite um pouco, descanse. Na segunda feira você passa com o doutor Fernando. O que ganha se preocupando por antecipação?
O final de semana se arrastou, com José Luís ficando quase louco pelo fenômeno que se agravava rapidamente. Na segunda feira o doutor Fernando o atendeu.
- Boxing Lobster.
- Senhor?
- Lagosta boxeadora. Uma patologia que se caracteriza pela percepção exagerada das cores. Ainda estão estudando. Os primeiros casos foram diagnosticados em alguns ex-combatentes da Guerra do Golfo. Infelizmente não posso garantir nada, a literatura médica tem relatado reversibilidade de cinquenta por cento, por isso não posso ser otimista e honesto ao mesmo tempo. Talvez você possa obter algum resultado se oferecendo como voluntário em pesquisas - informou o doutor tentando ser positivo.
- Virar cobaia, o senhor quer dizer...
Zé Luís voltou pra casa, ficando cada dia mais louco sob a constatação de que escapara da cegueira para ser condenado a enxergar demais. A depressão, que já vinha dando sinais, o envolveu lentamente, com seus enormes e silenciosos tentáculos. E sempre a mesma conclusão o dominava: estivera quase cego, para agora enxergar demais. E o que ganham os que enxergam demais? Ninguém queria a sua companhia, ao mesmo tempo em que ele mesmo não fazia questão disso. Optava pelo isolamento para sofrer menos. A esposa, os filhos, os netos... Ninguém mais o acessava. E foi assim que ele não encontrou o caminho de volta naquele intrincado labirinto colorido, deixando-se definhar até a morte.
No primeiro dia de finados, após a sua partida, apenas a esposa foi visitar o túmulo. O filho do meio, um tanto contrariado, teve que ir no dia seguinte. Talita, a neta mais velha de Zé Luís quis ir ao cemitério de qualquer maneira. Fez escândalo por causa disso. Renato, seu pai, não conseguia se aproximar do túmulo e a aguardou na interseção mais próxima das alamedas. O local lhe dava arrepios, e ele - apesar da boa convivência com o pai - não via motivo para estar ali. Tudo o que poderia ter feito por José Luiz - pensava - fora feito em vida. E tanto a saudade quanto a lembrança do sofrimento do velho o maltratavam demais. Portanto ficou ali, parado, observando a filha a certa distância. E ali permaneceram por tantas horas que o tempo fechou e uma tempestade começou a se formar. Em meio aos trovões que se faziam ouvir cada vez mais próximos, chamou:
- Talita, vamos!
A menina correu ao seu encontro sorrindo, na inocência de seus sete anos de vida.
- Pai, eu vi um caranguejo!
Estranhos que passavam apressados, também fugindo da chuva, riam do depoimento enquanto corriam para se abrigar.
- Eu vi papai, atrás dos vasos de flores, um caranguejo.
Renato sorriu sem graça.
- Não existem caranguejos por aqui, minha linda.
Na mesma noite, enquanto conversavam na sala, ele e a esposa ficaram chocados enquanto a menina apontava na tela da tv uma lagosta boxeadora. Estavam assistindo a um documentário sobre vida marinha.
- Esse mamãe, esse que eu vi no cemitério hoje de manhã. Papai não acreditou...
Mas Renato já não escutava, envolvido pelo colorido das imagens que o hipnotizavam.