A toca do Coelho

 

Berlock e Alice estavam a seis metros do enorme buraco, que um dia havia sido a estreita toca do Coelho. Era a primeira vez que Alice conversava com alguém do mundo real. Berlock tinha certeza que estava sonhando.

 

— Eu pensava que a senhorita fosse mais jovenzinha.

 

— Envelheci uns dez ou doze anos desde 1865. Nós, as personagens, envelhecemos conforme a popularidade das nossas histórias.

 

— Também pensava que esse buraco fosse menor.

 

— Há quatro anos, o País das Maravilhas sediou a Copa dos Mundos Fictícios de Críquete. O alargamento da toca foi uma das exigências dos organizadores. Era para ter sido instalado um elevador panorâmico, mas as verbas foram desviadas — Alice respondeu.

 

— Corrupção?

 

— Não fale essa palavra, se a Rainha de Copas escutar, ela manda cortar nossas cabeças.

 

— E quem ganhou a competição?

 

— Foi a Terra do Nunca. Aquele Capitão Gancho é foda nos arremessos. Nós fomos eliminados por Camelot na primeira fase. Também porra! Covardia do caralho!

 

Berlock, criado por duas avós e cinco tias nas regras da boa linguagem cristã, escandalizou-se ligeiramente com os palavrões. Alice, famosa por sempre perder as estribeiras quando falava de críquete, percebeu que tinha constrangido o visitante. Era preciso mudar rapidamente de assunto. De jeito nenhum ela perderia a oportunidade para confirmar alguns boatos sobre o mundo real. Além disso, havia a possibilidade de Berlock ser um dos Andarilhos, descritos no Grimório das Fugas. Todas as personagens infelizes com suas histórias sonhavam com um encontro desses.

 

— É verdade que os americanos pousaram na Lua? — Ela perguntou.

 

— É verdade — ele respondeu. — Chegaram lá em 1969. Mas há quem duvide da proeza.

 

— O senhor duvida ou acredita?

 

— Eu acredito.

 

— É verdade que as mulheres da Inglaterra podem votar?

 

— Podem.

 

— E as francesas?

 

— Podem também.

 

— É verdade que os ingleses entraram em guerra contra os alemães?

 

— Sim, e por duas vezes.

 

— E venceram?

 

— Só Deus sabe como, mas venceram as duas vezes.

 

O Coelho Branco, sempre atrasado, passou correndo entre os dois, e jogou-se no buraco. A história mandava Alice segui-lo; ela, porém, estava mais interessada no estranho visitante.

 

— E os galeões que cruzam os oceanos voando?

 

— São chamados de aviões.

 

— O senhor já navegou neles?

 

— Sim, várias vezes.

 

— E o tal do celular? Explique-me como ele funciona.

 

Berlock falou tudo o que sabia sobre os celulares. Alice engatilhava outra pergunta, mas foi interrompida pelos berros do coelho:

 

— Alice, Alice. Cadê você, minha filha… a história precisa andar.

 

— Mulheres votando, aviões, celulares. Tantas maravilhas no mundo real, e eu aqui presa neste conto de fadas absurdo, com esse coelho imbecil.

 

— Senhorita, não fale assim. Suas aventuras inspiraram e continuam inspirando milhões de pessoas.

 

— Aventuras? Inspiração? Se caio nesse buraco ou se atravesso o espelho, o resultado é sempre o mesmo: entro em histórias insípidas, cheias de jogos intelectuais e vazias de paixão. Estou cansada de literatices, eu quero suor, eu quero lágrimas, eu quero falas atrevidas.

 

— Mas senhorita, aqui nesse mundo, você está livre das mazelas que afligem as pessoas comuns. Está livre da morte e do esquecimento.

 

— Livre da morte? Será mesmo? Tenho ouvido boatos sombrios…

 

— Que boatos senhorita?

 

— Dizem por aí, que lá no mundo real, voltaram a jogar livros na fogueira.

 

— Infelizmente, isso tem ocorrido com uma certa e incômoda frequência.

 

— E se o meu livro for jogado na fogueira? Deus me livre morrer virgem e queimada. — Não tenho vocação para Joana d’Arc.

 

— Fique tranquila, isso nunca acontecerá com a senhorita.

 

— As personagens que viviam nos pergaminhos de Alexandria, também pensavam assim. Quando as hordas de Omar chegaram na cidade, a maioria delas virou cinza.

 

 O coelho berrou novamente. Alice, desacorçoada como um condenado diante do patíbulo, chegou mais perto de Berlock.

 

— Além disso, tem outra coisa que anda me tirando o sono.

 

— Que outra coisa senhorita?

 

— Tenho vergonha de falar.

 

— Pois não tenha, eu lhe asseguro que sou um homem honrado, que sabe guardar segredos.

 

—  O Chapeleiro Louco, de uns tempos para cá, tem me olhado de um jeito estranho.

 

— Jeito estranho?

 

— É difícil de explicar… ele me olha com olhos de lobo mau.

 

— Deve ser imaginação da senhorita.

 

— Imaginação que nada, depois que os meus seios ficaram desse tamanho, ele me olha como se quisesse me devorar.

 

Os olhos verdes de Berlock miraram nos seios da moça, como se fossem duas esferas de ferro sendo atraídas por um imã. Lá do poço, ouviu-se outra voz, levemente fanhosa, que também exigia a presença de Alice. Era o Valete de Copas.

 

— Ai meu Deus… é ele, senhor Berlock, é ele.

 

— Se eu pudesse ajudar de alguma maneira.

 

— O senhor pode — disse Alice. — Basta cair no buraco no meu lugar, que estarei livre para viver no mundo real.

 

Berlock fora ensinado a sempre ajudar donzelas em perigo, mas amava a monotonia acima de tudo. Mergulhar para dentro de um mundo mágico estava fora de questão, mesmo que fosse num sonho. Ainda assim, movido pela curiosidade, ele aproximou-se da beirada do buraco. Era um poço largo. Tão largo que poderia engolir um elefante.

 

O Coelho e o Valete de Copas, exasperados pela demora da heroína, berravam sem parar. Alice murmurava palavras estranhas, que Berlock acreditou ser uma prece em latim.

 

Houve silêncio… depois o ruflar de tambores… e clarinada.

 

— Alice, querida, já estamos indo te buscar.

 

— É a Rainha de Copas — disse Alice. — Logo os guardas estarão aqui para me levar.

 

Berlock, apoiando as mãos nos joelhos, inclinou-se para tentar ver o que acontecia lá em baixo. Não viu nada, mas sentiu duas mãos empurrando a sua bunda.

 

— Filha da puuut…