Café
Débora foi usar o banheiro às cinco da manhã e acabou perdendo o sono. Não estava habituada à vida pacata da roça e os sons típicos do campo também não ajudavam muito: sapos coachando, grilos cricrilando, o socador do monjolo que - apesar de bater a uns trezentos metros de distância - parecia provocá-la à janela do seu quarto. "Seu quarto" por força de expressão. Na verdade ocupava o quarto de hóspedes há vinte dias, e a proximidade do fim de suas férias a devolveria à fumaça de São Paulo em uma semana. Era a primeira vez que passava tantos dias na casa dos pais, em Lambari MG, desde que estivera casada. O fim do relacionamento, há quatro meses, fez com que replanejasse seu descanso num local mais calmo e afastado, e ainda podia contar com o apoio dos pais, que agora moravam sozinhos. Débora era a filha do meio. A irmã mais velha, Ariane, já estava em Portugal há dois anos, a trabalho. O irmão mais novo havia falecido há pouco mais de um ano. Caiu de um cavalo e fraturou o crânio. Seriamente ferido, ficou na UTI do hospital por alguns dias e não resistiu. Desde então, dona Conceição enfrentava uma séria depressão. Não aceitava a perda do filho, rapaz tão jovem e forte. Vivia chorando pelos cantos, à menor lembrança dele. Refém de fortes medicamentos, sua disposição oscilava bastante; só não se entregando de vez para não sobrecarregar o seu João, pai de Débora, e por que os animais e plantas a serviam como uma espécie de terapia ocupacional. As galinhas mesmo, era uma festa vê-las correrem ao encontro de dona Conceição quando, logo pela manhã, lhes jogavam milho. E muito intrigante a forma como disputavam o colo da dona, quando ocasionalmente se sentavam numa sombra para prosear. Por causa desses episódios, Débora ficou tão impressionada, inclusive, que estava decidida em converter-se vegana assim que voltasse à sua rotina.
Às cinco e meia, a porta do quarto dos pais rangeu. Débora estava no celular, remoendo uma mensagem recebida de seu advogado. Exigências descabidas que o ex marido tinha o disparate de fazer.
- A benção minha mãe!
- Deus te abençoe, minha filha. Perdeu o sono, foi? - perguntou a senhora enquanto abria uma embalagem de café.
- Estou entrando no ritmo! - brincou, para não preocupar a mãe. Dona Conceição, aliás, estava com uma expressão muito boa. Até mesmo a postura mais ereta revelava um ânimo renovado. Débora observou isso. - A mainha aparentemente dormiu muito bem!
Dona Conceição ajeitava o coador de pano no aro e, pode-se dizer, sorria.
- Sonhei com o Rubinho!
- A senhora...
- Ele conversou comigo... Aí nessa mesa. Ocupou essa cadeira que você está.
Débora sentiu um leve arrepio. Ajeitou-se, serpenteando na cadeira, onde à custo permaneceu sentada. Rubens era o irmão caçula falecido. Forçando interesse, conseguiu perguntar:
- Com o Rubinho, é? Que bom!
- Que ótimo, você quer dizer... Ele tá bem! Tá forte, precisa ver, a pele corada... Está feliz como nunca. Disse que eu deixe de me preocupar à toa, que ele está muito bem obrigado!
- Oh! Que boa notícia minha mãe!
- Sim! E ele disse mais... Que a Toninha aqui, a vizinha, tá esperando uma criança. Só que o menino (é menino também) não vai vingar não... Vai nascer morto, aos sete meses... E o corpinho TEM que ser enterrado ao lado da cova dele, lá no Saudade.
- Mas Toninha não é aquela senhora que conversou com a gente lá na porteira ontem?
- SIM! Conversamos ontem, você tava junto!
- Minha mãe! Ela tem idade... Não é possível...
- É sim! Rubinho disse! - dona Conceição se ezasperou.
- Tudo bem, tudo bem... Não fique nervosa. Apenas me prometa que não vai sair falando disso por aí sem ter certeza...
- Mas eu tenho certeza, criatura! Teu irmão estava vivo, falou comigo, sentado aí nessa cadeira...
- Tá bom, tá bom! Pelo menos prometa que vai ficar quieta até tudo se confirmar, está bem?
Dona Conceição levantou os olhos.
- Mãezinha... Até ela perder a criança... Quando ela perder... Quando... Se ela perder... aí a senhora conta o sonho e sobre a orientação do Rubens, que tal? - tentou obter garantia Débora - Pra evitar confusão...
- Tá bom, tá bom... - sorriu contrariada a dona Conceição, enquanto punha na mesa um bom pedaço de queijo Minas.
Em uma semana Débora estava de volta a São Paulo. Quatro meses depois, trincando os dentes para se manter vegana, da mãe a notícia de que Toninha anunciara a gravidez.
- Mãe... Mãe...
- Eu sei!
Três meses mais e, infelizmente, também o aborto se confirmou. Só então, dona Conceição, com muito tato, contou o sonho à vizinha, que acreditou e concordou em cumprir o ritual proposto.
Débora ficou impressionada com o fato. A forma como o irmão se comunicou com a mãe e a precisão de suas previsões. E hoje está convencida de que o evento não continha, em si, uma clara significação, e talvez tenha servido o único propósito de dar paz à mãe e libertá-la da depressão. Dona Conceição concorda... Em parte...