Amigos Imaginários

Digo a ti, prezado leitor, que pela falta de um amigo imaginário, Marcinho tinha três. E foi num dia em que balançava na rede, na varanda, que a mãe o percebeu falando sozinho.

Encostando a orelha na fresta do vitrô da sala, procurou espreitar o que o garoto de pouco mais de quatro anos de idade falava.

- Tá certo, Belardino, quando der você volta. Não tem "ploblema". É Onofre, não fica bravo, ele tem que ir. Ainda bem que você e o Fabrício vão ficar... - Ele falava, tentando raspar os dedinhos no chão enquanto balançava distraidamente, e seguindo bastante interessado no diálogo.

Suelen ficou intrigada. Não exatamente pelo filho estar falando sozinho, coisa comum à maioria das crianças, mas a entonação, as pausas e o enredo encorpado, bastante incondizente com a faixa etária dele. A carestia do mercado, juros, cheques. Embora seu vocabulário fosse bastante restrito, seguia uma vereda totalmente fora do contexto esperado: carrinhos, bola ou bichinhos de estimação.

- Tente falar com ele. Comigo foi evasivo. - convidou Éder, o pai, na hora do jantar, a examinar sua curiosidade sobre o comportamento do filho.

- É só uma criança, Su. Ademais, sou taxista. Querendo ou não, ele escuta nossas conversas. Falamos sobre tudo, e por mais estranho que pareça, esse universo não é assim tão inacessível a ele como imaginamos. - observou Éder, enquanto jantavam e Marcinho já engatava a quarta marcha de um sono pesado.

- Pode ser... - Ela concordou vacilante.

Na semana seguinte, o telefone tocou. Era a diretora da escolinha. Queria conversar. O garoto replicava o mesmo comportamento em meio às atividades.

- A senhora precisa entender, há mães preocupadas...

- Preocupadas com amiguinhos imaginários?

- Eu sei que é um tanto exagerado. Eu mesma tentei convencer algumas delas disso. Mas, como sabe, às vezes esse tipo de entendimento conflita com conviccçoes religiosas...

E esse era mesmo um ponto agudo. Na mesma tarde Suelen foi parada no supermercado. Ingrid, uma das mães a abordou:

- Eu falei com o pastor... sobre o Márcio... olha, não me leve à mal, mas ele é visitado por demônios...

- Demônios?? - replicou Suelen, indignada.

- Sim senhora! Capetinhas que querem se aproveitar de sua inocência...

A jovem mãe ofereceu argumentos que não convenceram Ingrid. E foi no estacionamento, de um modo covarde, que informou, já dentro do seu carro que não queria o Marcinho brincado com o Bruno filho dela, que ele não era de Deus, e que Suelen desse um jeito naquele comportamento.

Dar jeito aquele comportamento? - ela pensou - era uma criança, uma alminha que estava nesse planeta há parcos quatro anos e meio. Mesmo assim, consultou uma psicóloga.

- Ele é filho único. Pode ser um tanto estranho, mais de um, mas amigos imaginários são muito comuns na rotina de crianças solitárias. Às vezes essa fase se estende até os sete anos. No entanto, se pretendem ter mais filhos esses eventos tendem a diminuir.

- Meu marido e eu debatemos bastante sobre isso. Outro dia ele, o Marcinho, concordou em falar mais detalhadamente sobre isso com o pai. É de se pensar... O tal Belardino mesmo... é casado, tem família! Vira e mexe deixa as brincadeiras antecipadamente, à pretexto de voltar pra casa.. Todos os três são adultos, ficamos curiosos com a coincidência de serem nomes, digamos, antigos. Pelo menos no nosso universo...

- Não... De maneira nenhuma... Não percam tempo com esse tipo de preocupação. É apenas uma fase. E fases são passageiras.

Um ano depois, Marcinho entrava pela cozinha muito agitado.

- Mamãe, mamãe, o papai...

- Oi! Calma! O que tem o seu pai?

Ele fazia cara de choro.

- Ele...

- Ele o quê?

Mas o garoto não conseguia falar. Suelen preparou uma água com açúcar para o filho. E enquanto ele bebia, tentou falar com Éder, mas ele não atendia o telefone. Márcio recuperou o fôlego.

- Ele quebrou uma perna e bateu a cabeça.

- Deixe de bobagem, menino! - tentou repreendê-lo. - Seu pai tá vindo do trabalho, logo chega em casa! - completou sem certeza.

- Mãe, foi o Onofre que me falou. Ele viu tudo. Papai freiou brusco, para não atropelar um cachorro. O carro de trás bateu nele. Ele bateu num poste.

Infelizmente era verdade. Tudo se confirmou horas depois. Uma fratura na cabeça e outra de média gravidade na perna. Éder, por conta do leve traumatismo craniano, experimentou uma perda parcial da capacidade para se lembrar de alguns eventos . Principalmente os ligados ao trabalho e às finanças da casa. Do acidente em si, também não lembrava nada. O carro, por sorte, havia sofrido um pequeno dano no para-choque e tivera um pneu rasgado; coisas fáceis de se remediar. Mas como trajédia pouca é bobagem, Suélen, nessa época, era dona de casa. Ainda se julgava bastante importante no apoio aos primeiros anos do filho. E por adiar o retorno ao mercado de trabalho, via-se totalmente dependente do marido. Não demorou para que as coisas fugissem ao controle: a prestação do carro, o aluguel da casa, entre outros compromissos, não demoraram a sangrar as reservas financeiras do casal. As preocupações com dinheiro passaram a dominar as conversas do casal.

- Éder, os últimos cheques que passei vão retornar sem fundos. Não tardará para que a imobiliária e o banco batam à nossa porta. O que faremos? - Ela perguntava, sem coragem de ouvir a resposta.

Marcinho nada dizia... às vezes sentado no Jeep de brinquedo, outras balançando na rede... sempre nos cantos, de olhos arregalados e ouvidos atentos às conversas.

Mas passaram-se quinze dias e os cheques não retornaram. A memória de Éder, sutilmente, dava sinais de recuperação. Mais quinze dias, nenhum cobrador. Os próximos vencimentos batiam à porta. Agora, além dos dois principais compromissos, havia a fatura do cartão de crédito. Não podiam contar com familiares ou amigos. Nenhum próximo reunia condições de ajudá-los.

- A fatura veio zerada..

- O quê?

- A fatura do cartão... veio zerada! - Éder repetiu, estendendo o envelope para que ela visse com os próprios olhos.

Suélen estava certa de um verdadeiro milagre. E ficou ainda mais convencida no segundo e terceiro mês dos vencimentos do aluguel e da prestação do carro. Pela mais prosaica evocação contábil, quando se credita alguém é preciso que alguém seja debitado. Como os credores haviam recebido sem que eles houvessem efetivamente pagado? Estava matutando isto, com Éder já recuperado e na rua, tentando trabalhar normalmente, quando viu o Marcinho sorrindo e falando sozinho em seu quarto. Sorrateiramente, o ouviu agradecer ao Fabrício por ter ajudado aos pais. Um tempo mais tarde, juntos, tiveram coragem de perguntar ao garoto de que forma o "amigo imaginário" dele os teria ajudado. Em sua simplicidade de criança, Marcinho respondeu:

- Ele escondeu vocês por um tempo. Sumiu com os papel. Sumiram, fazia um gesto característico com as mãozinhas.

Éder e Suélen chegaram à conclusão de que fora uma ajuda provisória e deveriam se esforçar em juntar dinheiro novamente, por que mais à frente os cheques viriam a ser compensados e os valores dos gastos com o cartão futuramente apareceriam em suas faturas. Por curiosidade, quiseram saber as profissões dos amigos do filho. Mesmo sem saber exatamente do que se tratava, ele revelou que, segundo lhe disseram, Fabrício era contador, Belardino bancário e Onofre trapezista num circo. Os eventos, por assim dizer, acompanharam Marcinho até os seis anos, quando ganhou um cachorrinho e os amigos imaginários deixaram de visitá-lo.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 06/03/2024
Reeditado em 07/04/2024
Código do texto: T8013837
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