Cartas

- Deixe de sandice dona Ana! - ralhou o seu Adamastor com a filha. - nos dias de hoje... Seu intento não passa de uma ideia de "jerico". Onde já se viu? Lá se vão o quê... Quase um ano... Não vê que é um desatino?

Mariana dava de ombros. Completaria trinta e uma primaveras no próximo dezembro. Mas foi seu último aniversário que a instigou dar rumo à sua vida. Colocara para si a meta que vinha a calhar com a proximidade de um novo ano, este que agora já virava as páginas do fim de novembro: a de encontrar um namorado. Mas que fosse um namorado sério, adulto, dono de si e responsável, interessado em firmar compromisso. Não um imbecil feito o Clóvis, com quem perdera dez longos anos.

Só que a mãe, dona Flora, não tinha muita esperança nisso não. Dos quatro filhos, dois homens e duas mulheres, só Mariana permanecia solteira. De sua parte empreendeu todo o tipo de iniciativa, sobretudo as famosas simpatias casamenteiras que Mariana tanto desprezava: obrigou-a aos rituais da Lua Nova, da Lua Cheia, a malabarismos com velas, incensos, pétalas de rosas, canetas vermelhas em folhas virgens, caixas de sapato, entre muitas outras. De modo que a moça acatava tudo apenas para evitar atrito com os pais e para não parecer conformada com a situação, concluindo tão somente que a sabedoria popular é muito exuberante.

Dona Flora, por seu lado, ao fim de quase três anos de solidão da filha chegara a uma outra conclusão; essa bem mais desanimadora: A de que Mariana além, obviamente, da idade avançada, era dona de uma inteligência muito acima da média e isso assustava potenciais pretendentes.

- Homem não gosta de mulher inteligente! - sentenciava - sem perceber que assim colocava dúvida ou sobre a legitimidade de sua boa convivência com o seu Adamastor ou sobre suas faculdades intelectuais.

De fato, a moça era formada em História e em pedagogia, fato que pesava bastante na opinião dos pais; principalmente por que nenhum dos outros filhos ultrapassou o ensino médio.

- Mas são "feliz"! - fazia questão de frisar o seu Adamastor.

Bom, o plano de Mariana parecia realmente muito tolo, dada a sua formação e sua suposta intelectualidade: a moça pagou para deixar um anúncio no mural da agência dos correios da maior cidade mais próxima, Piracicaba. No pequeno cartaz estava escrito, ao lado da sua fotografia e de algumas informações pessoais básicas:

PROCURO A MINHA CARA-METADE. SE FOR VOCÊ, ENTRE EM CONTATO COM MARIANA J. O.

Esse J. O. era a abreviação de Junqueira de Oliveira. Mas a verdade é que esses Eiras a incomodavam: eira de eira. Talvez fossem sequelas dos tempos de ginásio, onde brincadeiras do tipo "Mariana Sem Eira nem Beira" eram comuns.

E encerrava, no rodapé de seu corajoso anúncio, os meios de contato: email, whatsapp, Facebook e endereço físico.

Detalhe que revelou apenas aos pais: fez questão de informar Rua, número, cep e bairro, porque sua cara-metade, como idealizava, seria - do mesmo modo que ela - uma pessoa que apreciava a comunicação por cartas. Dessas que não morrem de amor por parafernálias tecnológicas. Que vivem naquele mundo paralelo das engrenagens, das manivelas, e das experiências táteis. Os que tentassem acessá-la por outros meios seriam simplesmente ignorados.

Essa fixação vinha das boas recordações no convívio com a avó materna, dona Joaquina. Adorava seus relatos de infância e juventude, recheados de antigos telefones de parede com caixa de madeira e manivelas, lampiões à gás, charretes, Marias Fumaças, realejos, garrafas de leite deixadas na porta e, claro, as famosas cartas de amor entregues por mensageiros que se deslocavam de bicicleta. Deleitava-se com as histórias da matriarca sobre o período vivido em câmera lenta, em sua mocidade, quando o tempo escorria feito um rio calmo e caudaloso em sua lentidão cativante. Dos envelopes selados, carimbados, perfumados... os quais aguardava ansiosa que seu conteúdo, de um papel branco e pautado, fosse desdobrado e finalmente lido. Se contivesse uma caligrafia legível e rebuscada, o que na época não era tão raro, tanto melhor. Mariana se sentava, cheia de cerimônias, e prestava atenção a cada palavra lida pela avó nas cartas agora antigas, cujo papel se tornara amarelado pelo tempo: "A presente missiva espera encontrá-los gozando da mais perfeita saúde..." - lia em voz alta a dona Joaquina, enquanto remexia suas memórias guardadas num pequeno baú de madeira. Não era incomum que a moça, então menina, entrasse em devaneio, imaginando canetas tinteiro, ou que cheirasse demoradamente aqueles papéis, sendo mais tarde castigada por uma rinite crônica.

E isso representava, digamos, a ponta do iceberg. Por trás dessa, "sandice", como opinava o seu Adamastor, Mariana procurava uma pessoa com valores mais... a seu modo de ver... Humanos. Um homem de hábitos antigos, que mandasse flores, que abrisse a porta do carro, que apreciasse sua coleção de vinis e que concordasse numa vida mais lenta e contemplativa. Em suma: um extraterrestre, ou, a personificação de uma ideia de jerico. E o pai não estava errado: o anúncio completara dez meses. Desde então, apenas dois pretendentes se apresentaram dentro daquele critério: o primeiro, Ataulfo, era mais velho que o seu Adamastor. Usou palavras como "obséquio" em vez de "favor" e "alvissareiras" em vez de "promissoras"; palitou os dentes após o almoço e, se declarando enfadado, consultou o relógio de bolso seguido de uma longa reverência, inclinando-se como um cantor de óperas ao se despedirem. Para nunca mais! Ela quis deixar claro.

O segundo, sim, tinham praticamente a mesma idade. Demétrio. Um rapaz bem apessoado, que se apresentou uns seis meses depois do Ataulfo. O cabelo, ralinho e ainda menos volumoso por conta da parafina, era penteado de lado, formando uma risquinha que atravessava toda a cabeça, logo acima da orelha direita. Defendia ideias como o "poço com sarilho" no lugar da água encanada e tratada. Aliás, fizesse o frio que fosse, jurava de pés juntos só tomar banho de água fria, não sendo também, digamos, um grande entusiasta da eletricidade. Lia Machado de Assis à luz de velas e sem auxílio de dicionário. E não dispensava o uso de galochas em dias chuvosos, para proteger os sapatos sempre bem engraxados. Mariana o dispensou em poucas semanas, sem piedade. Após um desentendimento sobre o papel da mulher na organização da casa, mandou-o voltar para o seu século.

De forma que a proximidade de seu aniversário e essas duas experiências um tanto traumáticas a obrigaram a uma nova decisão: o terceiro eventual pretendente seria a sua última tentativa. Procurava uma pessoa perfeita e estava perto de se convencer do quanto isso é insensato. Seus requisitos nunca seriam preenchidos como imaginava.

No dia 12 de dezembro, véspera de seu aniversário, Mariana teve que acompanhar a mãe numa consulta médica, em Piracicaba. Nada de mais, exames de rotina. Assim que deixaram o consultório, atravessaram a rua, atraídas por uma casa especializada em aquarismo. Estavam encantadas por aquele verdadeiro reino de Namor, o Príncipe Submarino. Dona Flora, em especial, ficou obsecada pela exuberância e variedade de cores dos bettas. A filha ficou passeando nos mágicos corredores, entre as fileiras de aquários. Precisamente enquanto observava lebistes, seus olhos foram - ironicamente

- FISGADOS por outro par de olhos que a observavam do outro lado do pequeno tanque. Ela travou. Ficou arrepiada, os olhos arregalados, o coração disparou. Os peixinhos, displicentes, cruzavam de um lado para o outro, alheios ao que se passava. Não saberia explicar o que era aquilo. O rapaz a olhava com indisfarçável interesse. Ela corou. Simplesmente não sabia o que fazer, foi pega de surpresa por aquilo. Correu ao encontro da mãe. Dona Flora falava mais do que pobre na chuva. O vendedor apenas concordava com a cabeça.

- O que acha desse, Mari?

- Oi?

- Esse vermelhinho, o que acha dele?

[cri-cri-cri-cri...]

- Mariana!?

- Ah, sim, mãe, lindo. Comprou? Vamos?

O rapaz continuou lá no corredor, entre os aquários. O vendedor acenou pra ele:

- Só um minuto, Carlos!

Mariana baixou o rosto satisfeita. Chamava-se Carlos, então...

Ele respondeu com um gesto de tranquilidade. Enfiado numa calça social cinza, uma camisa branca de mangas compridas e uma gravata azul marinho.

Mãe e filha saíram. Mariana totalmente passada. Não podia se atirar ao rapaz, o que ele pensaria dela. Mas e se não voltasse a vê-lo? E se fosse casado? E se... E se fosse de outra cidade? Idiotice... O vendedor o conhecia, chamou-o pelo nome. Cedo ou tarde conseguiria mais informações a seu respeito. Isto é, se a ansiedade não a matasse antes...

- Deixei almoço em casa pro seu pai... Ele se vira... Vamos almoçar por aqui? Naquele self-service charmosinho que abriu na Juscelino?

Mariana demorou em responder novamente. Quando a mãe já ia perguntar se estava se sentindo bem, concordou com a cabeça. Foram. Dona Flora foi ao balcão se servir, enquanto a filha decidiu usar o lavabo. Quando voltou, ocupando a mesa, viu entrar o rapaz. Não era possível, seria o acaso ou o destino? Dona Flora veio sentar-se:

- Peço o quê para bebermos?

- Sei lá, mãe, pode ser Coca-Cola mesmo! - respondeu correndo para o balcão. Enquanto se servia de salada, ele escolhia prato e talheres. Ela atrasou o passo. Finalmente teria oportunidade de puxar assunto... Continuavam a se servir, calados. Mariana tomou coragem e o encarou. Alguns segundos e foi ele quem tomou a iniciativa, já que ela apenas sorria. Um riso nervoso, descontido, quase histérico.

- Será que nos conhecemos? Você não me é estranha... - e, como a moça apenas sorria mais e mais, sem nada dizer - o que foi, estou sendo inoportuno?

- N-não, não... É que... Desculpe... A sua gravata... A ponta da sua gravata mergulhou no vinagrete... - daí em diante, também ele, encabulado, ria sem jeito. Mesmo assim conseguiram conversar sobre trivialidades enquanto se serviam. Não, ele não comprara nenhum peixe. Aproveitou o intervalo do almoço (já que trabalhava ali perto) para encomendar um aquário, a ser retirado mais tarde, como presente para a sobrinha. Coincidência! A menina faria aniversário também no dia seguinte.

Após lavar a ponta da gravata, Carlos Eduardo sentou-se sozinho, numa mesa próxima, e cruzaram olhares durante todo o tempo em que ali estiveram. Dona Flora, se fazendo de boba, nada dizia. Enfim, deram um jeito de trocar telefones e se encontraram a sós mais duas ou três vezes. Não demorou se perceberam namorando, já que cada vez menos suportavam ficar longe um do outro. Poucos meses depois estavam de casamento marcado, quando Mari recebeu uma nova correspondência. O envelope apareceu amassado e úmido, esquecido que estivera, na caixa de correspondências fixada na grade do portão. Era branco, todo adornado de verde amarelo nas bordas, como se tivesse saído de uma máquina do tempo. Ainda por cima, perfumado... Só faltava mesmo que contivesse uma encorpada carta de apresentação, de letra bonita e rebuscada. E tinha...

Vinícius, segundo escreveu, morava no outro extremo rural da cidade. Apresentou-se em grande forma, com uma escrita estilosa e ao mesmo tempo cheia de classe, informando que pertencia a uma família tradicional e de futuro promissor. Ao se despedir, porém, a escorregadela, no final da carta:

- Mariana JÔ... achei curiosíssimo o teu sobrenome...

A moça nem levou em consideração, em nenhum momento chegou a considerar a possibilidade de conhecê-lo. Já completamente apaixonada por Carlos que estava. Com ele noivou e se casou.

Hoje moram numa casa térrea que não possue caixa de correspondências, às margens do rio Piracicaba. As contas de água e luz, entre outras correspondências estritamente comerciais, são enroscadas numa saliência entre o muro e o portão.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 16/02/2024
Reeditado em 07/04/2024
Código do texto: T8000364
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