Usurpador da embriaguez.
“Lá estava ele com a sua garrafa quase meio cheia, e com uma atitude aparentemente distorcida. Falando bem alto, entre as paredes ele caminhava, de tal modo que parecia que era aquele o seu estado normal. Cara trancada, mente poluída e boca de botija. Era desse jeito que o descrevíamos.
Sem ao menos descansar, dia e noite insurrecto ele bebia como se não houvesse o
amanhã. E de tão beberrão que ele era, até parecia que o estado de embriaguez
fazia parte da sua performance. E não só! O mais intrigante é que mesmo estando embriagado, ele falava coisas com sentido, e acima de tudo era um bom ouvinte, coisa que nenhuma outra pessoa embriagada conseguia fazer.
Ele atentamente ouvia e descaradamente criticava. Em detrimento disto, muitos o
chamavam de mano fala tudo, e outros o chamavam de o sem receio, isso porque
sem ao menos titubear, ele falava tudo o que lhe vinha em mente. Mas, por estar sempre embriagado as pessoas o ignoravam, até que subitamente, eu e os meus pensamentos começamos a pensar nele.
Observando todo o seu aparato distorcido pela embriaguez, apesar de tudo o que fazia e dizia, algo nele sempre me deixava na incógnita. Eu lhe conheço e faz muito tempo, e nesse tempo todo ele sempre estava embriagado. Sinceramente falando eu nunca o vi sério. Parecia que aquele era o seu estado normal. Mas, para mim aquilo não era normal.
E o mais anormal é que em todos esses anos que eu o conheço, nunca o vi a por uma gota de álcool na boca. Pôs embora ele talvez tenha sempre bebido em casa, nos Bares ou em outros momentos em que eu não estava presente, ainda assim, tudo isto me intrigava muito. Porque parece que era um mero enfeito aquela garrafa nas suas mãos, até porque eu já tivera conversado com ele por mais de uma hora, e adivinha! Ele não consumiu nenhuma gota.
Bem, antes me parecia normal porque ele estava sempre embriagado, e eu não levava em consideração porque pensava que aquele álcool que havia restado na garrafa era o resto das muitas outras que ele consumia.
Mas, certo dia parei novamente para reflectir, e conclui que era impossível. Porque na verdade ele estava sempre saudável apesar de estar sempre embriagado. Mediante à isto, conclui que ele não era uma pessoa normal.
Como é que alguém poderia ficar sempre embriagado por mais de 20 anos? E como é que alguém embriagado e que sempre anda com uma garrafa meio cheia nunca tivera lhe visto a consumir, nem só um golinho? Sinceramente falando, nesses todos anos que passaram, as únicas coisas que ele fazia era andar com aquela garrafa, em algumas vezes com ajuda da parede, e falar com quase todo
mundo. Ele era o bêbado louco e psicólogo. Porque ele não se cansava de aconselhar, argumentando com tudo o que lhe via em mente. Seja quem for a pessoa, ele exortava e criticava, chegando por vezes de agir sem escrúpulos.
Tão intrigante com a sua personalidade, decidi saber mais sobre ele, e conclui que o que tinha de fazer é observar de longe todos os seus passos.
E certa vez tentei saber mais a respeito, falando directamente com ele, e tudo que saiu da boca dele foram palavras instrutivas e encorajadoras. Mesmo falando com um tom sem nexo, ele conseguiu me persuadir, e me levou quase a desistir daquilo que era a minha missão. Por isso, decide que não iria falar mais com ele directamente para evitar casos como esses.
E por eu estar muito curioso e ansioso para desmistificar aquele homem, decidi
vigia-lo por tempo integral, isto é, quase 24 sobre 24 horas, todos os dias. E algo
que me deixou surpreso e que na verdade já sabia, é que em todos os dias que eu
estava o vigiando, ele nunca sequer meteu uma gotinha de álcool em sua boca.
Praticamente ele acordava, pegava naquela garrafinha ainda não acabada e se
punha a andar.
Andando, ele já parecia estar fora de si. Ele já parecia embriagado. Algo que seria
impossível porque eu o vigiei a mais de dois dias, e durante esses dois dias ele
simplesmente já acordava aparentemente bêbado, se punha ao caminho do bar, e
chegava lá totalmente embriagado. Na verdade ele frequentava o bar
simplesmente para conversar com aqueles outros bêbados, porque nem no bar eu
o vi a consumir. E quando perguntei a respeito a todos que frequentavam aquele
bar, alguns diziam talvez! Mas, outros ficavam na incógnita, diziam eles que
aquele homem quase não comprava nenhuma bebida, porque ele já vinha sempre
embriagado e com uma garrafa na mão que nunca acabava. Após ouvir aqueles
relatos que satisfaziam e aumentavam ainda mais a minha curiosidade,
finalmente consegui juntar todos os factos. Todo aquele mistério por fim estava
próximo de ser desvendado.
E só de saber que estava tão próximo de descobrir a verdade, o meu rosto sorria e
os meus pensamentos saltitavam de alegria. Afinal de contas ele não é quem diz
ser. Aquela sua atitude aparentemente distorcida não passava de uma farsa. Ele é
na verdade era um usurpador da embriaguez. Mas, como é que ele pode fazer
isso? Eu bem que já desconfiava, o jeito que ele agia não era comum, porque ele
acarretava consigo uma performance muito diferente da de outros bêbados. Ele é
um descarado, afinal fala seriamente quando nos ofendia daquele jeito que só ele
sabia. Quer dizer, ele abertamente nos ofendia, dizendo tudo o que lhe vinha na
mente, e a gente simplesmente o ignorava pensando que era devido ao seu estado
de embriaguez, afinal era tudo uma mentira? - Óchas! Esse cota nos deve sem mil
desculpas.
Entretanto, após reunir todos os factos, quando finalmente estava para destroça-
lo com toda a verdade, subitamente ele apareceu ao lado da minha casa, e acabou
vindo até mim. De um jeito totalmente incomum, olhando para mim, seriamente
disse, para! Para de tentar bisbilhotar a minha vida. Para o seu próprio bem, para.
Hepa, apesar de que estava quase a dar o xeque-mate e contar a todos a verdade,
eu tive que parar e ocultar em mim toda aquela verdade. - Ariscar a minha vida
só por causa disso? Não não! Deixa estar. As pessoas ultimamente andam tão
frustradas, eu até também já vi nos filmes. Os que foram contra os dizeres desses
psicopatas sempre acabaram mal, porque de uma maneira ou de outra, eles
sempre voltam para cumprirem a sua promessa de dar um fim na nossa vida”.
Abril de 1982.
– Mamãe, mamãe! Venha ver o que encontrei nos pertences do vovô. FIM.
Referência: Livro "Além da Utopia".