Eles estão chegando, 46

Ainda ouço seus gritos, mesmo com a memória começando a me faltar. Os fantasmas me atormentam todas as noites. Há dias não consigo pregar o olho: deve ser a culpa. Que culpa?

— Eu não tenho culpa! — grito para o espelho à minha frente. Ele me responde com seu sorriso mais sarcástico: “tem sim!”

Minhas mãos estão sujas de sangue. Centenas ou milhares de vidas inocentes. Vai saber? Já disse que não tenho culpa, apenas segui A Ordem.

Ninguém jamais desobedeceu. Mesmo assim, todas estão mortas. Foram eliminadas quando A Grande Ordem subiu ao poder. Só eu sobrevivi.

Um lobo uiva na noite. Será que vem me pegar? Achou meu esconderijo? Então, não há tempo a perder. Pego uma folha amassada, uma caneta velha ainda com tinta e começo minha história. Alguém precisa saber que não tive escolha. Fui obrigada... Ó, Deus, como me arrependo!

A população mundial cresceu em números alarmantes, mesmo depois do vírus. Um boom de novos seres humanos nascendo. Pessoas demais. No nosso país, o governo resolveu intervir: controle de natalidade.

— É, isso mesmo! — grito mais uma vez e olho para o maldito espelho. Já deveria tê-lo quebrado, mas quem me faria companhia neste fim de mundo?

No princípio, foram apenas avisos, depois multas, esterilização e, por fim, a eliminação no ventre ou depois de nascidos. Fomos recrutadas nesse período. Arrancadas de nossas casas, ainda na infância. Filhas únicas, éramos em torno de 500 meninas. Não tínhamos nomes, apenas números. No fim do treinamento, sobramos apenas 50. Nossa missão consistia em encontrar e eliminar as crianças indesejadas pela ditadura. Com mandados suspeitos de busca e apreensão, invadimos casas e destruímos famílias.

Não tínhamos opção. Não tínhamos escolha.

Começamos pelos pobres e sua prole numerosa. Estes não iam mais ao pré-natal compulsório. Tinham filhos em casa, escondidos. Tentando nos enganar, na hora do parto arrumavam um jeito de a vizinhança não ouvir o bebê. Depois de um tempo, alegavam que a criança havia morrido e então tinham outras, dando a mesma desculpa. Muitas vezes, vizinhos encobriam uns aos outros e ali acabava criando-se uma verdadeira comunidade protegida.

Mas isso durou pouco. O governo tinha meios para rastrear as novas crias: comparavam bancos de DNA e, com tudo devidamente investigado, acionavam-nos e lá íamos nós, matando e destruindo. Os ricos deram mais trabalho, uma vez que ainda podiam mandar os filhos a mais para fora do país. Porém, diante dessa afronta, A Ordem tomou medidas drásticas: confiscou todos os bens e massacrou os primogênitos.

Massacraram crianças! — o espelho maldito volta a gritar. — Você massacrou todas!

— Eu apenas obedeci... — respondo à minha imagem refletida e ela aponta para a porta do casebre onde por anos consegui me esconder.

— Aguente as consequências. Eles chegaram, 46.

Ouço passos no piso velho de madeira. Sombras se avizinham da minha janela. Não fazem nem questão de se esconderem. Afinal, estou velha. Não ofereço mais perigo.

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Esse conto faz parte de Ed. 01 de Histórias de Lugar Nenhum, um periódico bimestral que é lançado na Amazon com mais de 10 autores.

Fabiana Nichelli
Enviado por Fabiana Nichelli em 12/11/2023
Reeditado em 12/11/2023
Código do texto: T7930427
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