Eu tu

Chão molhado, água limpa de sujeira que se deixou acumular. É uma dona de casa que limpa e limpa na linha do eterno e já lavou uns 4 ou 5 traseiros por mais ou menos 2 ou 3 anos; depois disso ela gastou energia para lavar a sua própria, mas isso, coitadinha, é coisa dela... Um osso maldito, largado pelos cachorros, entra pé adentro, não muito fundo como o buraco que leva ao inferno, mas o suficiente para uma minúscula formiga sorrateiramente se alojar e, pela pressão, morrer e ali ficar. Só se viu que era um corte por instinto, a dor já velha de algumas boas horas ganhou um tom e gosto meio azedo quando se pisava o pé por inteiro no chão. Uma manchinha vermelha, ódio ao osso, malditos cachorros que não comem em outro lugar. Era sangue de alma; jorrou álcool, de raiva mesmo, várias vezes, ardia, mas aguentaria. Intimidade forjada com a vizinhança, um olá, adeus. A porta aberta para os cachorros darem suas voltas soltos pela casa, Hoje vou dá-los um voto de confiança para ficarem sem coleiras na rua, saem como trovão, cheiram um mato aqui, outro ali, cheiros do mundo, outros animais, territórios. Vai passando um menino, um dos cachorros morde-lhe a perna, Inferno, Ai!, diz o menino acanhado, Cachorro louco, já para dentro! Uma chinela ao ar, ameaças, ele pareceu entender. A vontade é de bater em suas cabeças de animal colorido, mini-palmadas, medo de ser malvada demais, irracionais, não é? Mas insuportáveis. Eu confiei em vocês.

O pé ficou dolorido mesmo, vem cá - tripartite - foi o que lhe veio à cabeça. Lavar cenouras, e tem que lavar aqueles panos também. Ficou um corte com uma pele meio grossa cobrindo, deve ter entrado de lado, -lateral, -vertical, -de banda. Maldito osso. O pé infeccionado, pensou, e então uma formiga, duas formigas, entrando também de banda por trás da pele rumo ao buraco aberto, formigas à ferida, não à deriva, morrerão no sangue. Decomposição de formigas enxertadas no pé, gangrena. Era o cheiro de planta com caule de molho em água, apodrecendo. Não é nem de animal morto; vegetal podre pode ser pior, e o pé estava quase um vegetal. Tinha que lavar, mas lavar o corpo inteiro. Ela ou ele, tinha quantos buracos no corpo para cuidar, se precaver de sujeiras e infecções. Acabei criando mais um no pé. Como que faz um ser com tantos buracos, tantas infecções no mundo a se proteger. Ou os buracos ou as infecções.

Lava-se a vagina, lava-se o ânus, lava-se a boca. É preciso lavar logo essa ferida, ela pensa, antes que formigas entrem e se enterrem ali mortas para sempre. E ainda poderia acontecer que um inseto, quando estivesse caminhando descalça por algum motivo, fosse pisado pelo pé túmulo de formigas e sangue de inseto e decomposição se misturariam numa espécie de bomba-necrose. Certamente morreria - ou apenas perderia o pé. Eu não perguntei ao menino se tirou sangue, e se ele morrer? Neste instante de pensamento se concretizando para dar lugar a outro, o menino bate palmas à porta. Ele é vacinado? pergunta ele abrupto. É sim, mocinho, machucou mesmo? Não. Sem problemas. Ele é vacinado? Meu Deus, já não me lembro, menti ao menino. É vacinado, mas vacinado contra a raiva? Não sei, não sei. Se o menino morrer por contrair raiva...

A ferida, lavar a ferida.

Apareceu-lhe na mente a sugestão, como imagem de uma agulha no tecido mole, a lembrança de um band-aid perdido em alguma gaveta, relíquias de feridas de criança. Sim, um único só, vai bastar. Ao cheiro de gaveta de madeira velha, que insinuava ou baratas, ou casulo e berço de baratas, ou grandes insetos que se escondem no escuro da madeira, misturou-se um cheiro de suor lavado à sabão, cheiro de pele de homem que resiste esturricada o dia sob a luz do sol e o trabalho de músculos, seu marido. Ele sussurra ao seu ouvido sem nenhuma cadência que sugira amor ou delicadeza, era uma ordem, Mulher, hoje é dia, gutural voz caindo fundo no medo desta que já carregava matéria decomposta nos pés. Ela não o viu por inteiro, apenas de relance a visão de unhas pretas coçarem um peito aberto, um gramado de pelos.

Agora é observar o feijão, apreensiva, feijão na pressão apreensiva, ela na pressão apreensiva do feijão na visão. A panela explodindo, o fogão, inutilizável, uma desculpa, sem sexo, não vê o susto? Olha as crianças aparovadas. Mas aí o marido lhe culparia, uma desonra, uma mulher dessa idade explodir panela, não fazia nada que não fosse ficar em casa. Poderia mesmo infeccionar o pé, tirar o band-aid, pisar no amontoado de areia na porta da vizinha, infecção de urina de gato, senhora, vou passar o antibiótico (ininteligível rastro de caneta), carimbo. Ficaria com febre, sem disponibilidade, isso ele respeitaria. Ele tinha suas frescuras, pegar mulher enferma, rapaz..., ele diria. Ou o cachorro poderia mordê-la num ataque de raiva, ficaria chocadíssima, esqueceria da panela, pow! (silêncio pós explosão), fogo se espalhando, infecção de urina de gato, o marido também assustadíssimo, os filhos, o marido todo carinhoso, cuidando-a, vingando-a. Ela enferma num fingimento, ficaria boa no momento em que desejasse, ninguém saberia. Um alguém sequestra um dos filhos, qualquer um, ela atrás, viaja pelo mundo, correndo ao encontro do filho raptado, salva-o. O marido com seu retorno a ama mais do que já amou qualquer coisa antes, a heroína.

Só resta um som incessante, agudo, um leve cheiro tão amante do nariz banhando os cômodos da casa, o barulho da pressão que escapa pela válvula suq suq suq suq suq agora era seu pensamento, vazio, como pássaros, meditando no som e na fumaça subindo-lhe o rosto.

De repente ela não estava mais na própria mente, uma frase se formou, uma crítica que já não podia se encontrar nas categoria do pensar: todo mundo pensa morar dentro da cabeça. Mas ela não, ela observava o mundo, observava a si mesma. Ela não se era, não poderia ser, tanto quanto era o barulho que saía da panela. Era tudo que observava - as fronteiras se amolecendo-, eu feijão, eu arroz, eu casa, eu tu, eu fogão, eu sem chama, eu sem eu.