Pedra fadada

Reduzi o ritmo da corrida para emparelhar com o sujeito que subia o morro empurrando uma pedra. Uma pedra imensa, aliás.

- Oi!

- Oi - grunhiu ele, concentrado em rolar a pedra ladeira acima.

- Não venho muito para esses lados, mas me parece que já vi você por aqui fazendo cardio com a pedra...

- Era eu mesmo - resumiu ele.

- Nada contra, mas não acha que já está queimando calorias suficientes só subindo o morro?

Ele virou o rosto contraído pelo esforço para mim.

- Foi a série que me prescreveram.

- E não pode mudar? - Questionei, testa franzida.

- Não se eu quiser continuar vivendo.

- Esse é um raciocínio um tanto radical - ponderei. - A gente se exercita para ter qualidade de vida; empurrar uma pedra desse tamanho morro acima não me parece ser o melhor modo de obter isso.

- Ah, mas eu me livro dela lá em cima - redarguiu.

- Deixa a pedra no alto do morro?

- Não, eu a empurro morro abaixo. Não sabe o alívio que me dá!

- Uma sensação de ter se livrado do problema... - deduzi.

- Até que eu chego no sopé do morro e começa tudo de novo - admitiu ele com uma careta.

- É uma prescrição bem radical essa - comentei. - Já pensou em trocar de treinador?

Fez um gesto negativo.

- Não iria aceitar um não como resposta.

- Considerando o seu shape, creio que o objetivo já foi alcançado - avaliei. - Talvez esteja na hora de reconsiderar seus objetivos de vida.

- Parece que meu caminho já foi traçado - replicou, enxugando o suor da testa.

- Pois eu tenho um conhecido na prefeitura, na secretaria de infraestrutura, - expliquei, baixando a voz. - Se você faz sempre esse caminho, talvez ele possa lhe ajudar a... se livrar do problema.

- Sou todo ouvidos - respondeu.

E no dia seguinte, a pedra caiu no buraco de uma obra da prefeitura. Era um buraco bem fundo.

Quando a recuperaram, ela havia se transformado num calhau que podia ser levado no bolso.

- [27-10-2023]