O DOM amaldiçoado
Antes de iniciar esta palestra, preciso dar um aviso aos meus conterrâneos brasileiros presentes neste congresso sobre saúde mental. Fomos muito bem recebidos nesta linda cidade, capital da República Checa e honra-me constatar na plateia profissionais tão gabaritados. Este auditório proporciona um conforto em suas poltronas reclináveis e uma vista deslumbrante do Castelo de Praga ao rio Moldava. Em homenagem à belíssima recepção, esta apresentação será realizada no idioma checo, mas terá tradução simultânea em português e inglês e posteriormente a transcrição no nosso idioma nativo.
Meus cumprimentos aos colegas presentes ou aqueles que possam assistir, ou ler a narração desse caso clinico. O meu nome é Feliz Auspicioso, tenho Pós-Doutorado em psiquiatria pela Universidade de Harvard. Como dito anteriormente, nasci em Salvador, no Brasil e trago aos meus e minhas iguais esse episódio que suponho seja inédito nos anais dos estudos sobre a saúde mental.
E o seu ineditismo, porque dessa vez não se trata de uma paciente e sim, de uma companheira nossa de profissão. A brasileira, vamos chama-lá pela sigla CSD, psiquiatra experiente entre seus 40 e 50 anos, reconhecida por sua excelência com os seus clinicados e com proeminente vida acadêmica.
A tão vasta legitimação de seu profissionalismo, se deu por um extenso horário de trabalho, às vezes chegando a 12 horas ininterruptas e muitos atendimentos pró bono, que não aconselho a nenhum colega, a experiência diz, o transtornado mental é um ingrato.
Trabalhando seis dias por semana, eventualmente sete, a colega CSD desenvolveu muitas ferramentas de trabalho a tal ponto que muitos poderiam descrever como um DOM, contrariamente afirmo que não era uma bênção e sim uma maldição.
CSD analisava criteriosamente por expressões faciais, modulações vocais e a linguagem corporal relacionando aos neurotransmissores e a química cerebral. Exemplificando, caso o enfermo mental exprimia as sobrancelhas juntas e curvada, era o transtorno de ansiedade, e saía do consultório em mão uma receita de um benzodiazepínico; se outro transtornado apresentasse a pálpebra superior caída, comissuras dos lábios para baixo e sobrancelhas cerradas, esse era um depressivo e voltava para casa com a sua farmacologia completa.
Há depoimentos que um paciente bipolar, com depressão e transtorno de personalidade, cluster B, narcisista e histriônico, diagnóstico que levaria uma década para ser feito, foi identificado em cinco minutos.
Suas consultas eram cada vez mais curtas, produzindo diagnósticos e prognósticos exatos. Tanto que os examinados praticamente eliminaram a “reconsulta”, ou melhor, a volta ao consultório para averiguação de sua saúde mental. Alguns se diziam curados e outras cientes de seus problemas, que não precisariam mais do atendimento psiquiátrico.
Pacientes depressivos, esquizofrênicos, clusters ABC, bipolares, ansiosos, obsessivos compulsivos, borderlines e outros transtornados foram acompanhados por essa pesquisa, em momentos equilibrados rotineiramente e por consequência suas famílias, amigos e colegas de trabalho começaram a ter uma vida regrada no bom senso e salutar.
Seria uma revolução na medicina psiquiátrica, sem dúvida, se não fosse o efeito colateral. A habilidade fantástica não se restringia apenas ao consultório. Uma mentira, essencial para a convivência em sociedade, não lhe causava mais dúvida. Em qualquer situação e lugar nada escapava. Vamos imaginar uma cena hipotética, CSD demonstrasse ciúmes e questiona-se o seu cônjuge ou “conja”, como disse certa vez um senador brasileiro, por uma olhadela rápida e inocente para uma nádega ostentosa de uma transeunte, não seria um mistério elucidar a sinceridade da resposta.
O fardo de ter tantas informações adquiridas pela leitura de uma micro expressão facial a tornava uma refém. No almoço, saberia que a caixa do restaurante traía o marido com o garçom, que o vendedor de calça jeans do shopping era um podólatra ou em uma reunião de trabalho, identificaria que sua sócia estaria deprimida.
Virou uma paranoia infinita a sua cabeça, diagnosticando todos e de alerta aos conviventes ou não. O seu mundo se transformou em um imenso consultório, onde havia apenas transtornados mentais momentâneos, persecutórios ou para toda vida.
Tornou-se uma ilha de solidão cercada de pessoas por todos os lados. Para manter a sanidade mental, o isolamento seria uma das soluções ou poderia se aconselhar com colegas que ajudassem a pensar no seu restabelecimento a condição humana básica.
Após alguns meses intensos de exames e pesquisas, uma junta de especialistas decidiu propor a convivência com pessoas que tivessem um perfil de personalidade que não a surpreenderia. Para não se alongar muito nesta explanação, resumirei o que todos esses perfis tinham em comum: a burrice. Sim, vocês ouviram ou leram isso mesmo, CSD teria que emburrecer para manter a sanidade.
A tese dos psiquiatras foram estudadas em textos de escritores com grande habilidade em interpretar os humanos. Um dos exemplos é Nelson Rodrigues que diferenciou a burrice da ignorância: “A burrice difere da ignorância. A ignorância é o desconhecimento dos fatos e das possibilidades. A burrice é uma força da natureza”.
Após conviver por dois anos com pessoas previsíveis, egoístas e com sinceridade “homicida”, atualmente CSD, voltou a ser humana, demasiadamente humana, tem a ineficaz condição de não entender nada do outro intuitivamente e a dúvida virou a sua melhor conselheira. Tanto que ao olhar o relógio é necessário consultar outro para confirmar se as horas estão corretas.
Registro da escriturária: após o final da palestra ficou um clima de incredulidade, as palmas de agradecimento demoraram um minuto para surgir. Muitas pessoas assediaram o psiquiatra brasileiro com perguntas, até que um dos colegas gritou no fundo do anfiteatro: o café está servido com donuts. O salão esvaziou-se em 30 segundos.