Fiquei na Curva

“ Fiquei na curva ”

Gasto geralmente uma hora para chegar a Goiás. De moto. É Ano Novo. Aniversário da minha tia. Minha esposa e filhos viajaram. Estou só. Meus pais e irmão me aguardam lá. Não pude ir antes. Compromissos inadiáveis. Uma tese de mestrado para orientar. Duas de doutorado para aprovar. Sou professor, de História. Mas também luto capoeira.

Sei lá porque estou dizendo isso tudo. Vai ver é porque estou só.

Depois dessa curva eu vejo a Igreja de São Francisco, ela fica no alto. Bem branquinha, da porta azul. Já é quase entardecer. O céu explode em laranja. Deito a Harley. Faço uma parábola longa e de raio aberto. Aí acontece o que nunca ocorreu. A minha querida Nala – toda moto que se preza tem nome- falha, pipoca, engasga e eu desequilibro. Um buraco. Uma perdiz voa assustada. Coloco-a na vertical. Tomo um chicote e saio derrapando de lado. Estou na terra. Não desgrudo dela, até perder bem a velocidade. Arrancamos um monte de canela-de-ema. Vou chegando perto do buraco, vou cair. Um pequizeiro providencial surge na minha frente. Esbagaço a cara e o corpo nele. Nala segue mais um pouco. Desmaio.

A casa é de sapê. O chão de terra batida. A colmeeira à vista. Não tem forro. O branco caiado lá em cima é de fezes de morcego. Faz frio. Ouço ao longe um monjolo. Batendo. Batendo. Batendo. Ninguém. Nada. Silêncio. Verifico meus pés. Estou descalço. Falta um dedo do pé esquerdo, o segundo. Há um grande talho na coxa do mesmo lado. Sou canhoto, devo ter me apoiado sinistramente no tombo. Minha boca está inchada. Rapidamente sinto a falta de alguns dentes. Estou com herpes, também.

A porta vai rangendo devagar. Parece filme. Ela abre. Não sei nem descrever a figura mais estranha que já vi na minha vida. Uma mulher. Alta. Cabelos lisos e longos. Olhos cristalinos. Boca encarnada de um batom vermelho daqueles que não se usa mais. Unhas enormes. E encarquilhada. Deveria ter sido bonita quando jovem. Chegando perto percebo que ela quase não enxerga. Ao sorrir os caninos são aparados. Dá medo.

- Acordou meu m’nino?

- Onde estou? Que dia é hoje? E a moto? Cadê a moto?

- Uma de cada vez.

- Qual é o seu nome?

- Arca de Noronha.

- E isso lá é nome?

- No seu casaco estava escrito HD. Pior que o meu, não?

O “intermezzo” insensato duraria horas. Tentei levantar e não consegui. Ela gentilmente me empurrou para trás e debrucei novamente no linho e no travesseiro macio de penas de ganso. Imaginei que fosse. Pois acordei com eles gritando lá fora. Pensei que estava delirando, mas não; era aquele “fonc”, “fonc” típico desses animais de poder, pertencentes ao grande círculo do ano.

- É ganso, né?

- Se já sabe por que pergunta?

Desisti. Ela me serviu uma sopa quentinha e deliciosa. Não, era um caldo. De galinha. Amarelo. Certamente açafrão. Será que ela estava me engordando? Ri da minha estultice e tentei raciocinar. Sabia que estava a poucos quilômetros da cidade. Meu corpo sofria. Não havia ninguém mais, além de nós dois. E eu preso. Miseravelmente, dependia dela para viver.

Nenhum rádio, nem sombra de TV ou mesmo quaisquer eletrônicos. Na passagem dela pela cortina de contas da sala eu vejo que o fogão é de lenha. O lampião é de querosene. O cheiro é ruim no começo da noite, depois acostumei. Lá fora os vaga-lumes pululam em festa. Faz calor. Veranico de janeiro. Pela última vez tento entabular uma conversação.

- Arca?

- O que é filho?

- Você é sozinha?

- Num já viu?

- Mas eu não. Estou com saudades dos meus pais, do meu irmão, da minha mulher, dos meus filhos, dos meus amigos, do meu cachorro, daquela minha namorada...

- Eles morreram?

- Claro que não!

- Pois é, mas todos esses aí já se foram pra mim...

- Que ano você nasceu.

- Em 50.

Fiz silêncio. Foi constrangedor para mim, mas ela nem deu bola. Bem, ela vive calada. Já acordei várias vezes à noite e a vi em pé na soleira da varanda, me fitando. O olhar dessa mulher é algo indescritível. Ele penetra, ele é carnal. Já sustentei muita mirada no meio da roda. Contra homens fortes e flexíveis. Já amei uma mulher que me trespassava com fogo de incendiar a Serra Dourada ao amanhecer. Mas nada, nada se compara ao inominável ato de fixar minha pupila com a dela. O máximo que consegui foram trinta segundos.

Bom o que interessa é que estando em janeiro de 2000 ela não poderia nunca ter somente cinqüenta anos. A vida teria sido muito dura para ela, mas resolvi perguntar novamente.

- Que ano, mulher?

- 1750.

Em outra situação eu riria. Gargalharia bem alto, como faço quando bebo um bom vinho. Um impenetrável, daqueles com baixeiro, encorpadões, de tanino rascante e retro-gosto permanente. Mas não. Eu engasguei. E apesar de dominar bem quatro línguas e conhecer mais uma meia dúzia de outras, calei-me em todas elas. Sei que é impossível. Mas pareceu-me a mais pura verdade. Assim como o mundo não acabou, eu vi que na fantasia dela eu poderia adentrar e me safar daquele lugar atemporal.

- Isso significa que você viu nascer a capitania de Goyaz.

- Minha mãe era índia goiá. Dos quarenta mil habitantes destas paragens, uns 20.000 eram escravos. Ela era uma delas. Mas ouro nenhum comprou sua liberdade. Morreu no meu parto.

Em aproximadamente uma semana – calculo pelo crescimento das minhas unhas da mão- foi a primeira frase completa e inteligível que ela pronunciou.

- Uns trinta anos depois o tanto de gente dobrou. Mas não era tanto ouro como se pensava. Ainda bem que com vinte e cinco eu larguei a bateia e o mercúrio e fui tecer bilro, assim que caiu o alvará que proibia essas atividades. Naquela época eu era rica.

Estupefato conferi mentalmente todos os dados, e eles batiam por completo. Como uma velha senhora, isolada no mato poderia ter estudado a história, assim? Com pormenores tão ricos? Dúvida cruel. Prossigo com o diálogo –bem, era mais um monólogo, um desabafo, até- ou mudo de assunto?

- Estamos perto do Bacalhau?

- Ele passa ali, na Fazenda Santo Antônio. Durante cem anos consecutivos banhei-me nua no poço da Sota. Agora só vou lá em noite de lua cheia. Faz bem, me renova. Dá-me de lembrar quando os Rodrigues Jardim, os Fleurys, os Bulhões e depois os Caiados davam aquelas festas lindas de São João. Eu penteava meu cabelo, ele não era branco assim, e prendia com retalho de chita dos meus vestidos, pois era tão liso que nada segurava ele.

Depois de ela citar quase toda a minha origem familiar, só faltando os derradeiros Alencastro, eu perdi todo meu embaraço e parti logo para a inquirição.

- E os Alencastros?

- Esses eram cheios de energia e loucos, docemente doidos. Apaixonados pela vida. Especialmente o Baptistinha, que chegara do Rio Grande do Sul.

Não poderia ser. O meu mais velho ancestral goiano, citado nominalmente. Procurei algum documento nos bolsos e notei que estava nu, e meus pelos todos raspados. Diante de tão insólita constatação restava-me apenas duas vias. As raias da loucura e apelação ou então desfrutar de todo o saber e prazer de ouvi-la contar histórias e mais histórias da minha terra e família. Fui sábio, segunda opção.

Cada história um almoço diferente. Empadão com guariroba, claro. E depois de sobremesa, alfenins. Sete gansos com o bico pintado de vermelho. Neste dia me falou de Veiga Valle e seus santo de botas, dos dedos em “V”. Contou-me que só os coronéis, o vigário e o juiz é que mandavam no povaréu.

Depois me serviu um arroz com suã, que de longe ouvi o porco guinchando quando ela o matou para retirar sua espinha. Logo em seguida doce-de-leite com banana. Meu fraco. Adoro bananas. E ela sabia de tudo. Do que eu gostava. Banana maçã, com pedra mesmo. Delícia. Ouvi-a desfiar todas as enchentes do Rio Vermelho, do seu traçado, da casa da ponte que desenhou junto com Manoel Ribeiro Guimarães para aos trinta e poucos anos poder pagar aos recebedores do Quinto Real.

Dezenas de fatos, todos com datas, e com uma lembrança tão vívida que conquistava meu coração de cátedra e pesquisa. Quisera meus amigos da École de Hautes études numero 4 pudessem ouvi-la... Mas meu corpo de lutador falava mais alto. Eu já havia levantado duas vezes para urinar. Fica engraçado, assim sem pentelho.

Eu já não sabia o que fazer. Todas as perguntas que levei anos para solucionar e perscrutar em livros mofados e mal conservados do Instituto Histórico e Geográfico, ela respondera. Até na Torre do Tombo –onde subornei um funcionário- eu fui, para descobrir mais sobre meu estado. E ali ao seu lado, o conhecimento chegava fácil. Corrente, sem lapsos ou fragmentos.

Só restava um pedido. Sair dali. Que me levasse embora. Eu queria ver os meus. E então, numa manhã especialmente serena, falei.

- Até quando eu fico aqui?

- Até quando eu quiser.

- Por favor, eu quero ir. Eu lhe levo. Vem comigo. Você vai morar na minha casa.

- Não posso. Se eu sair daqui eu morro. Só vivo aqui. Só existo aqui.

- Que besteira, vamos. Me levanta.

- Só se você fizer uma coisa.

- Que coisa?

- Me dá um beijo!

Poderiam vocês pensar que o asco me invadiu naquele instante. Ledo engano. Pela segunda vez em minha vida de estudo e porrada eu vi uma pessoa falar tão sério. E ser correspondida. Eu vi a paixão enfeitiçada de seus olhos. E inspirei fundo. Prendi bem o fôlego. Em pé fiquei e a abracei com total zelo. Seus cabelos alvos e respiração ofegante foram se aproximando. Cheiro de jasmim. Cravou suas unhas nas minhas costas tão acostumadas com a meia-lua de compasso e o martelo. Girei lentamente. Não doeu. Senti seu corpo –da minha exata altura- crescer e sua boca tocar a minha como um pêssego aveludado se desmancha entre dentes famintos. Despenquei no chão.

Acordo. Um carro de boi geme e eu idem. Estou nele. Minha moto também. Limpa, sem um arranhão. Encerada, com odor de abelha jataí. Minha roupa está toda rasgada, menos a jaqueta. Ela fala baixo. Canta algo em francês. “La Vie em Rose”.

- Ciao, Baptistinha.

- Ciao, Arca.

- Afinal quem é você?

- Sou o amor. Não tenho hora, nem idade ou endereço. Só um rosto. Sempre o mesmo.

E num breve-infinito sorriso dela, eu pude pela última vez encara aquele olhar e – pasmem- uma índia totalmente glabra abriu seus braços e num clarão beijou sua própria mão e soprou. Imediatamente a ignição da moto ligou o motor. Montei. Parti.

Vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuum.

Ninguém acredita. Mas agora quando faço aquela curva, tomo muito cuidado. Porque da próxima vez que quedar, por lá fico.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 25/12/2007
Código do texto: T791334
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