"ARTISTA" SEM IGUAL !

(Decidi não esperar por quase 8 MESES, para inscrever este conto em um Concurso, apenas por ser INÉDITO... assim sendo, lá vai mais 1 estória !)

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"ARTISTA" SEM IGUAL !

"A Literatura é mentir de maneira

que seja verdade". - JON FOSSE

Quem está na "terceira idade" já foi colecionador... arrisco dizer que, se não o fez, era um completo idiota. Sem ofensa aos idiotas, era impossível não se colecionar algo, não importa o que fosse: vidros de perfume, garrafas de refrigerante e whisky, figurinhas, papel de chiclete e de balas ou bombons, os indefectíveis (seja lá o que for !) SELOS e as vagabundas "chapinhas", traduzindo, tampinhas de garrafa de todos os tipos, até de... cachaça, pode um negócio desses ?!

Entre a garotada sem posses, "eira nem beira", sem ter "onde cair morto" -- não se irritem, essas expressões se usava nos anos 1960 -- a coleção seria, para todos, a de bolinhas de gude, "petecas" aqui no Pará. Pipa, "raia", pandorga, "papagaio", "rabiola" nunca vi ninguém colecionar. Tinha-se uma só... perdida esta nas "batalhas aéreas" era necessário "batalhar" para conseguir "grana" que comprasse uma substituta. Os poucos guris, meninos abastados, colecionavam gibis, "coisa" que nem se podia trocar com colegas e, claro, as carteiras de cigarro e, também, caixas de fósforo.

Já MOEDAS e dinheiro de papel não dava para guardar, toda "grana" era pouca para a pipoca e o sorvete de 3 bolas, saindo de uma máquina parecendo geladeira. Havia ainda a "matinée" dominical no único Cinema da cidade, onde toda a molecada se encontrava para ver Tarzan ou Mazzaroppi, além das "chanchadas" da Atlântida.

Papai era motorista de caminhão -- caminhoneiro, hoje -- e passamos por 3 Estados até virmos morar em Belém, já nos tempos da Ditadura Militar. Como havia muito frete aqui, optou por trazer esposa e filho para cá. Confesso que a gente vivia bem, nós com ele e ele com 2 ou 3 amantes, em Estados diferentes. Um dia meu pai cansou... decidiu "economizar" e largou a que lhe dava mais despesas e fazia mais exigências: "sumiu de casa" ! Ficou pra mamãe a coleção de dinheiro de papel e moedas que ele amealhara por quase 50 ANOS, desde sua infância nos anos 1920, tempos de Charles Chaplin e do Ford "Bigode". As dificuldades avolumaram e mamãe implorou aos Céus ajuda, uma sugestão salvadora. Tinha FÉ a danada e os Deuses todos -- unidos no mesmo espaço etéreo, desde a Antiguidade -- lhe deram a solução para seus problemas.

Nessa época, em fins de 1980, surgiu a máquina Xerox colorida, não aquela com cores verde & vermelho "pobres de marré de si", mas a de reprodução total de todos os matizes, 246 cores. Por coincidência mamãe trabalhara numa Gráfica, especializara-se em diagramação e guardava ainda dezenas de folhas de um papel especial, um tal de "couché", mis grosso e sedoso que o A4 e o A5 convencionais. Surgiu-lhe a idéia de tornar-se uma "Casa da Moeda" sem moedas (?!), produzindo dinheiro "que não valia nada", ou melhor, sem valor comercial algum. Parece contradição, maluquice, porém os deuses a incentivaram:

-- "Vai fundo, boneca... tudo vai dar certo" !

E DEU ! Nossa vida virou "um mar de rosas e, em pouco tempo, mamãe conseguiu pagar o caríssimo arrendamento da impressora milagrosa, pois a Xerox não vendia seus aparelhos. O "insight", a inspiração salvadora veio a partir da coleção de cédulas antigas do papai. Mamãe passou a "reproduzí-las"... jamais dólares atuais, as valiosas libras, o sempre bem-vindo Franco francês (há outros, pateta !). Papai nem os tinha, preferia notas de pequenos países, de Nações remotas perdidas em ilhotas do Pacífico e as de regiões orientais ou da Austrália.

Aí estava o segredo de mamãe como NUMISMATA, colecionadora de "moedas", que dinheiro DE PAPEL também o é. Só fiquei sabendo das tramóias de dona Helena anos depois, quando decidiu "me enfronhar" (eu, hein !) nos seus negócios, ela já estabelecida num canto do enorme prédio do Correio Central de Belém, na rua, no calçadão, como colecionadora. Sucesso de venda era uma nota de THONGO, "paíseco" que nem estava no Mapa Mundi... mas ela tinha "cédulas" de Principados indianos, de regiões rebeladas da Ásia, de Nações aborígenes da Oceania, tudo DINHEIRO absolutamente desconhecido (?!) no Mundo moderno.

Acompanhei mamãe em suas vendas... "seu marido fôra MARINHEIRO, viajara o Mundo inteiro em navios mercantes e por lá comprara o inesgotável acervo de NOTAS estrambóticas que profissional algum do ramo possuía. "Exclusividade" de dona Helena de Tróia, não por acaso batizada com o nome de uma nobre guerreira. Ao voltarmos para casa questionei a estória sobre papai viajando "por mares nunca dantes navegados"... justificou que as florestas amazônicas se parecem com o imenso mar verde dos oceanos e um caminhão -- na estrada -- com mero barco comercial, lotado de produtos. Não deixava de ter razão !

No meu aniversário de 18 anos recebi um presente que gostaria de apagar da memória, mas não consigo: dona Helena me permitiu entrar em seu "cofre forte", digo, no atelier onde praticava pintura com habilidade e perfeição. Diria eu que os percalços de uma "viuvez genérica" (com o traste do marido ainda bem vivo) lhe aprimoraram as qualidades de exímia aquarelista. No quarto "quase secreto" revistas de todo tipo abarrotavam mesas e prateleiras, além de 2 cavaletes com os "croquis", os esboços de novas Notas "inéditas" de micro-países nos confins do Planeta. Tudo aquilo era "meu legado", um presente... esperava ela que fosse também "meu Futuro" ! Os cabelos eriçaram, da testa a nuca e protestei, indignado:

-- "Mamãe, mas isto é FRAUDE... crime" !

-- "Nem uma coisa, nem outra, rapaz... todo esse dinheiro é CRIAÇÃO minha. Não é FALSO porque nem existe" !

-- "E os colecionadores... como é que ficam" ?!

-- "Onde sempre estiveram, colecionando "papel velho", dinheiro que não compra coisa alguma em lugar nenhum" !

-- "Ainda bem que a senhora NÃO COPIOU a moeda nacional" !

-- Não tenho porquê, idiota ! Dinheiro do Brasil nunca valeu nada NEM NOVO, quanto mais velho, centenário" !

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Saí do quarto chocado, decidido a dar novo rumo a minha antes pacífica existência... deixei crescer cabelo e barba, pintei a carapinha de roxo, de loiro, verde-limão, vermelho-melancia, tudo para disfarçar a origem familiar temendo que, a qualquer hora, a PF arrombasse a porta lá de casa e levasse a "velha" -- nem tão velha, uns 45, se tanto -- pro "xilindró". Com a Delegacia a uns 300 metros do Correio, mamãe continuou sendo a "camelô" mais famosa e mais requisitada da Avenida Pres. Vargas, tendo a sede do BC - Banco Central bem perto dali.

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Passaram-se menos de 3 anos até que um "mal súbito" fez mamãe "partir para o Olimpo" para agradecer pessoalmente aos Deuses todos os anos de bonança em sua curta existência. Entrei no seu "estúdio" pela derradeira vez... juntei a papelada (centenas de "notas") numa caixa de papelão e enterrei no quintal, queimar chamaria a atenção dos vizinhos. Se acidentalmente alguém me reconhece como filho da dona Helena, ouve aos berros:

-- "Qualé, merrrmão ?! Sem essa, xará... vim do RRRio semana passada" !

"NATO" AZEVEDO (em 7/out. 2023, 13hs)