VISÃO DE FÉ
Os ares quentes e secos de transição de inverno para primavera sempre trazem problemas de saúde física, como ressecamento de pele, nariz, cabelos e olhos. Já os problemas psicoafetivos não são agravados por este período. Apenas continuam por lá, ou, melhor dizendo... por aqui, já que a mente a que me refiro é a minha própria. Tenho andado distraído, sem lenço, sem documento e também sem qualquer alento. Preciso dar continuidade a projetos passados, estes à espera de meu retorno já há um bom tempo. Que tipo de projetos? Musicais, literários, científicos, religiosos e outros menos dignos de menção. Para falar a verdade, estes últimos merecem até o limbo, dada a natureza inconfessável dos mesmos. Bem, mas que tipo de texto é esse? Parece um daqueles a denunciar o completo estado de desorientação no qual se encontra o autor, levando o pobre leitor do nada a lugar nenhum. Vejam vocês, a inutilidade do tempo aqui gasto. Insisto e acredito, porém, na capacidade e na resiliência de quem acompanha este caótico conjunto de letras e fonemas, de forma a vislumbrar um possível final adequado a este documento. Venham comigo, apesar de que não posso garantir bons momentos, se não os tenho ao alcance.
Eis que, então, como uma mensagem superior, daquelas que nos atingem uma vez na vida até a morte, ou até mesmo nunca ocorre de maneira consciente, encontro-me repentinamente aqui, neste lugar estranho, etéreo e parcamente iluminado, a não ser por... esperem! Sim, vejo uma luz... muuuuito branca, intensa, atrativa, sedutora. Um facho incrível, vindo não sei de onde, lá do espaço eterno, oposto a mim. Incompreensível, inexplicável, pacificador. Quero ir até lá, mas, mas... algo me segura, impede minha progressão, raios! Contrariado, volto-me ao lado negro da força e a contemplação transforma-se em estupor: me vejo caído ao pé da mesa, com minhas pernas emaranhadas em meio ao fio elétrico da extensão; o velho computador Lenovo aberto; consigo ler a tela: visão de fé? Sim, sim, era o texto o qual eu, entediado, tentava escrever; lembro-me bem. Mas, por que parei? Sei da chatice de seu início. Só que não sou de desistir assim, tão facilmente. Devo terminar... Meu Deus! A imagem é terrível: no chão, caído, a cabeça ensanguentada; as borbulhas vermelhas pipocando, impulsionadas pelas pás do ventilador Britânia, comprado na última Black Friday a preço de banana. “Por isso deve ser tão barulhento”, penso eu, interrompendo a antevisão do inferno. Retomando... meu Deus! Agora me recordo: levantei-me às pressas, assustado com o som do alarme do vizinho chato. A quina da cadeira de madeira de lei; pontiaguda, tombada sobre o piso encerado ontem, a ponta repleta de sangue da pior espécie: o meu! Mas, como? Se estou aqui, como posso estar no chão, inerte, imóvel, sem respiração, as pupilas dilatadas, como o gato da minha filha, ao me ver sentado em sua poltrona de descanso...
Devo confessar, amigo leitor: perceber que se morreu é uma sensação completamente nova, já que nunca havia morrido antes. Dizem que a morte não existe, pois se estamos vivos a contrapartida é ausente; e, se estamos mortos, não sabemos. Contudo, a questão a qual se impõe a esta altura dos fatos apresentados, é por demais óbvia: como posso estar morto e simultaneamente estar relatando tais fatos conscientes a vocês, não sei se pasmos ou entorpecidos pela escrita pedante? É verdade, já li muito sobre EQM, as chamadas experiências de quase morte. Tenho reais dúvidas sobre a possibilidade de estar experimentando um destes eventos, uma vez que faltam-me até agora o desfile de fatos importantes de minha vida. “Talvez pelo fato de terem sido bem poucos...”
─ Juca! Juca! Minino, vem cá!
─ Acorda minino! A aula é às sete...
─ Juquinha! Ôôô Juquinha... a janta tá servida! Vem logo...
─ Dr. Júlio César, seu cliente já chegou...
─ Soldado Ramos, sentido!
─ Contribuinte 108.972.504-39, seu pedido foi indeferido...
─ Não, Juca, nem... nada a ver! Já tenho namorado, sai fora...
─ Sinto muito, você não passou! Mas olhe, a vida é assim mesmo...
─ Sr. Júlio, seu procedimento não foi autorizado...
─ Um dia você consegue! Não desiste...
─ Parabéns! Você agora é mutuário. Até os oitenta anos...
─ Puxa J.! Minha moto nova! E agora? F...
É! Não tem jeito! Estou morto mesmo. Fazer o quê? Todos vão passar por isso, é certo; só não esperava acontecer assim, deste jeito tão ridiculamente banal, sem glamour. Tão, tão... melhor deixar de lado! Voltemos às EQM. Isso mesmo! O próximo passo é a visão confortante; a paz celestial. Dependendo de nossa cultura, ficaremos frente a frente com quem irá nos transportar para um mundo de enlevo e serenidade, onde estaremos ao lado de seres energéticos, em tons de rosa ou branco. Entenderemos, finalmente, o sentido da vida. Estou pronto! O lado luminoso mais uma vez me atrai; implacável, aliciador, incontrolável. Lá está! Divina! Maravilhosa! Intangível! Inconfundível!
─ Carla Gugino?
─ Seu Juca? Seu Juca? Acorda! O sinhô tá babando no computadô...
─ O quê? Onde? Quem...
─ O sinhô anda tão isquisito, depois que aposentô! Vamo homi, tenho que arrumá o iscritório. Vai caminhá lá fora...
─ Dona Zica? Ah, não! Logo agora? O que eu fiz pra isso?
Pois é, prezado leitor. A morte não é tão ruim como dizem, certo? A vida, às vezes, pode ser bem pior...
Obs: os fatos aqui narrados são fictícios. Qualquer semelhança terá sido mera coincidência.