LUTEI CONTRA MIM MESMO E VENCI

 

 

Eu vi a saída propícia para o meu escapamento de um local escuro e gosmento. Não entendo como consegui permanecer nele por tanto tempo. Estava na hora de sair dessa "prisão" onde fui colocado, porém tentei recuar, para ver se essa vida acabava ali, mas foi em vão, fui puxado por ferros que imaginei que iriam me ferir, mas foi o contrário, me senti mais aliviado, conseguia respirar de outra forma, mais abrangente. Enfim aceitei aquela nova forma de vida, estava aparentemente feliz, no entanto eu tinha outro pensamento, meio confuso, ele beirava o lado contrário daquele que me induziram a seguir. Eu entrei nesta dimensão com o intuito de fazer o bem, somente o bem, mas algo me impulsionava para o lado contrário e era muito forte, eu quase não conseguia conter esse desejo. Foi desde os meus últimos momentos naquele ambiente onde meu corpinho frágil teve alterações, eu senti o desejo de não sair dali, porém tive que sair mesmo, fui impulsionado por uma força bem maior.

 

O tempo passou, horas a fio e eu admirando aquilo que para mim era novo, aquele mundo estranho, diferente daquele de onde vim e que quase não lembrava de mais nada. Só resquícios de lembranças que aos poucos iam se apagando. Minha mente começou a se adaptar com o que ali acontecia ao ver pessoas junto a mim, sorrindo, fazendo mimos e eu sem nada entender. Procurei demonstrar a minha gratidão, apesar de pender para um lado que eu sabia não ser bom, era impulsionado para ele e mesmo resistindo parecia que esse seria o meu caminho, mas eu tentava, com as forças que tinha naquele momento fazia o melhor de mim, pois precisava ser o que fui determinado para tal, neste mundo para mim estranho ainda. Fui orientado que o tempo me ajudaria a vencer uma batalha para a qual eu seria um soldado especial e determinante.

 

Anos se passaram, vi meu corpo franzino se transformar e ter uma aparência bem melhor. Aquilo me satisfez, me sentia melhor do que no lugar de onde vim e que restaram apenas poucas e confusas lembranças. Andava pelas ruas da cidade em meio a almas que se cruzavam em movimentos frenéticos e contínuos, eu tinha a impressão de que nem me notavam e isso me chateava, eu as odiava. Tinha outras almas com as quais eu me relacionava, eram boas, mas tinha momentos que as desprezava. Minha mente ainda era confusa, estava entre eu e eu mesmo, uma coisa de louco, era como almas divididas e brigando entre si. Porém eu dominava o que achava melhor para mim, afinal a outra parte dependia de mim.

 

Cheguei a idade adulta, não era mais uma criança apesar de viver num mundo bem diferente da realidade, não via em meus pais o que eu esperava, sentia uma vontade de ter algo mais do que precisava, queria liberdade, sentiria até prazer se conseguisse voar tal qual um pássaro, mas era impossível e isso me deixava infeliz. Na faculdade era odiado, visto como um "intelectual de merda" (era assim que me tratavam), o que me deixava profundamente abatido. Criei alguns problemas, mas eles foram contornados, a sorte andou me ajudando, eu realmente "saía da linha" quando o meu outro lado momentaneamente me controlava, mas sempre perdia, eu queria ser mais forte que ele.

 

Conheci Lélia só depois que deixei a faculdade, estava formado, aos trancos e barrancos entrava em um mundo diferente, me tornei um cientista que em alguns casos era tratado como louco, pois eu queria provar que ninguém está só em seu próprio corpo, sempre tem "outro" que empurra pro lado contrário. Lélia me ajudou muito nesse sentido, me dava conselhos, mas eu me achava dominador e em algumas ocasiões até duvidava dela, porém nos dávamos muito bem e ela compreendia a minha situação. Nos casamos após quase dez anos de convivência, foi só quando ela engravidou. Na hora do parto eu tive uma convulsão (nunca tinha tido uma antes), me vi num lugar escuro e gosmento, como da primeira vez não queria sair dali, queria que tudo terminasse ali, no entanto algo mais forte me fez escapar daquele útero (agora eu sabia que era um útero) e meus olhos quase fechados foram invadidos por uma luminosidade estranha. Vi os ferros me puxando e eu saindo com uma certa dificuldade. Sentia uma dor profunda (da outra vez não aconteceu isso), comecei a gritar, a reagir àquela situação, vi algumas criaturas que pareciam sorrir enquanto outras tinham semblantes de tristeza e aquilo me confudiu. Inesperadamente meu pensamento se concentrou em voltar para aquele cubículo gosmento e novamente me vi lá, não mais sentindo aquela dor terrível. Porém, por pouco tempo, pois minha visão daquilo tudo escureceu e eu retornei para outra dimensão, aquela de onde vim da primeira vez.

 

Do vidro da sala onde acontecia o parto vi o feto ser tirado da barriga da minha esposa Lélia, ela chorava, os médicos a acalmavam. O nascituro estava imóvel, vi um dos médicos balançar a cabeça negativamente, a criança não tinha vida. Aquilo me abalou emocionalmente. Tudo escureceu novamente e quando despertei vi Lélia chorando por causa da perda do nosso filho. Quer dizer, do seu filho, não era meu filho, ela o matou. Lélia, por que você matou a criança? Ela não merecia tamanha maldade! Peraí, não é bem assim, ela não o matou, disse para mim mesmo, ou melhor, disse para meu outro lado que insistia em dizer que Lélia era uma assassina. Ela, bem calma sobre o leito do hospital, já bem orientada pela equipe médica, tentou me acalmar também e até conseguiu. Eu tinha plena certeza de que ela não era culpada, aconteceu, foi o destino que assim quiz.

 

Nos meus momentos de folga comecei a escrever um livro que falava sobre a minha vida, sobre a minha permanência neste plano, que não é único no universo. Expliquei sobre a minha luta contra mim mesmo, com o meu outro lado, mas fui considerado como louco, poucas pessoas acreditavam. O livro ficou pronto em quase um ano, mas vendeu pouco e eu me desestimulei. Muitas vezes penso em voltar para o meu antigo convívio, melhor dizendo, o meu outro lado me induz a isso utilizando uma forma não adeqüada para um ser humano digno e do bem, mas eu resisto e vou continuar resistindo enquanto tiver forças. Minha mulher Lélia me ajuda nesse sentido e com o passar dos anos vou aprendendo cada vez mais sobre o comportamento dos humanos. Sou um deles, tento reagir o máximo que posso contra o outro eu que não me deixa em paz. Já se passaram mais de cinqüenta anos, Lélia não conseguiu mais engravidar desde aquele fatídico dia quando ela teve seu único filho e que infelizmente nasceu morto. Posso me considerar um vencedor contra o meu outro lado, pois até agora tenho dado muita sorte.

 

 

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 03/10/2023
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