Contos do inconsciente. N° 8 (Inferno em Porto Alegre)
O riacho Ipiranga, que nasce na zona leste de Porto Alegre e corta certa parte da cidade, desaguando no lago Guaíba, estava transbordando, como na vida real, devido às fortes chuvas que castigaram a capital dos gaúchos decorrente do ciclone extratropical. Cristian estava em cima de sua bicicleta, pedalando a toda velocidade, pelo pavimento, na direção oposta do percurso das águas, quando avistou dois outros ciclistas à sua frente, o que o fez aumentar a força nas suas pernas na tentativa de ultrapassá-los, já que parecia estar em uma corrida. Ao alcançar e passar o ciclista mais próximo, percebeu que seu cotovelo havia encostado no rosto do seu adversário, havendo um pedido de desculpa, na mesma hora, pelo ocorrido, enquanto o ciclista mais adiantado se perdeu de vista e sumiu no horizonte.
Neste momento, o dia virou noite, e os dois homens encostaram suas bicicletas debaixo de um toldo e começaram uma conversa. O homem que agora estava em pé ao lado de Cristian aparentava ter cerca de uns vinte anos de idade, ou um pouco menos. Tinha a pele de cor morena clara, cabelos curtos e encaracolados, esguio e de modos um tanto afeminados. Ao escorarem-se com os cotovelos sobre um muro de pedra, estando ambos lado a lado, o jovem tirou uma mochila das costas e de dentro dela um livro.
- Quero te mostrar algo, veja.
O rapaz tirou um livro de capa vermelha e estendeu à Cristian, tendo este pego o exemplar na mão. Na capa da obra estava o título do livro, “Lancelot”.
- Você já leu Shakespeare? – Perguntou o rapaz.
Cristian respondeu que não, como na vida em vigília, mas mesmo não tendo lido Shakespeare nem nada sobre a saga de Lancelot, sabia ao menos que a história desse que era um dos principais cavaleiros da Távola Redonda, na lenda do rei Arthur, não havia sido escrita por Shakespeare, mas sim por Chrétien de Troyes. O que é que estaria por trás da construção dessas imagens? Teria algo a ver com a semelhança dos nomes do criador das imagens oníricas com a do criador da saga de Lancelot, sendo uma manobra do inconsciente de Cristian para tomar conhecimento tanto das obras do dramaturgo inglês como da obra desse poeta medieval que é tido como um dos precursores do romance moderno, visto que o gênero literário “romance de cavalaria” começou com este trovador francês? De fato, essas indagações são muito interessantes para todos que se debruçam sobre o surgimento de tais imagens.
Após Cristian ter pego o livro nas mãos, o jovem pulou o muro e se dirigiu até uma parede que estava em sua frente, virou o rosto para Cristian, fazendo seu pescoço dar uma volta de 180° e, logo após isso, plantou bananeira, isto é, colocou as duas mãos no chão, rente a parede, e apoiou as pernas na mesma, não conseguindo ficar nesta posição nem um segundo sequer. Após recompor-se, fez mais uma tentativa, só que desta vez apoiado com os dois braços em uma grade de ferro que agora havia aparecido. Depois de ficar um pouco mais de tempo nessa posição, o rapaz foi sugado para dentro do chão, ficando apenas com a cintura pra cima aparecendo, com as pernas balançando.
Agora as coisas estavam ficando mais claras para Cristian. Tanto a virada de pescoço como a situação que o rapaz estava no momento, com metade do corpo chão adentro e só as pernas aparecendo, eram cenas do Inferno, na Divina Comédia, sendo a primeira cena correspondendo às características físicas dos espíritos de políticos florentinos que se encontravam no inferno e a segunda imagem fazendo alusão ao castigo imposto aos traidores, segundo Dante, sendo este traidores Judas, que traiu Jesus Cristo, e Bruto e Cássio, que traíram Júlio César. Será que o sentimento de traição era o principal elemento que dava vida a essas imagens no sonho de Cristian? Essa era mais uma das boas perguntas que poder-se-ia fazer. Tendo o sonho terminado dessa forma, o que resta é terminar o relato com a frase que se encontra nos portões do inferno: “Ó vós que entrais, abandonai toda a esperança.”