Liberdade

Ela nada sentiu quando empurrou-o da varanda. Aliás, sentiu-se aprazida ao vê-lo rodopiar mãos e braços e cair de cara no concreto do pátio do condomínio. Todos os vizinhos burgueses logo poriam suas fuças para fora de suas janelas, alguns iriam gritar horrorizados, outros nada diriam, outros lamentariam ou simplesmente fingiriam que nada tinha acontecido.

Ela estava mais preocupada com a avaliação geral do condomínio que com o que estava a pensar de si mesma. Nunca passou-se-lhe pela cabeça de que iria matar alguém. Aliás, nunca passou-se-lhe pela cabeça de que este alguém seria seu próprio marido. Indo além, nunca passou-se-lhe pela cabeça de que após vinte e oito anos estaria livre de um sujeito de baixa autoestima, moralista e alcoólatra.

Sua queda foi cinematográfica: o corpo de um metro e oitenta e cinco e cento e três quilos atingiu o chão do condomínio a quicar apenas uma vez. Como se uma bola cheia de areia fosse arremessada de vários metros de altura e encontrasse o concreto. Foi um impacto com som seco. Uma queda nada silenciosa. Como uma mão que soca, com base na raiva, uma mesa de madeira maciça.

Elvira certificou-se de que Adilson não levantar-se-ia. Esperou pelo menos por dois minutos antes de virar as costas. Fê-lo quando viu que, provavelmente por ter rachado a cabeça, uma poça de sangue começou a se formar ao lado do corpo. Nem dor deve ter ele sentido. Caiu de barriga para baixo - como um pão amanteigado quando escapa-se-nos dos dedos.

Ela adentrou o seu apartamento e, quando começou a ouvir os gritos e bochichos dos demais moradores, fechou a parte de vidro de sua janela. Era uma noite muito bonita, agradável. A lua brilhava forte no céu, sem nuvens, com uma brisa macia e acalmante. Elvira dirigiu-se à pequena adega, escolheu um vinho chileno, Vertical Don Merchor, cabernet sauvignon, safra de 1995, e rumou-se à sua sala de estar.

Um barulho de sirene soava bem baixo lá fora.

Abriu o vinho, a encher uma taça. Pô-la sobre a mesa de centro e, para sentir-se animada, começou a dançar La Donna È Mobile, sob a voz de Pavarotti, e a embriagar-se com o vinho. Uma sensação muito boa começou a exalar em seu corpo. Sentia-se ela feliz, livre, liberta.

Socos fortes na porta de seu apartamento começou a ouvir.

- Por favor, abra dona Elvira - dizia uma voz masculina -, é a polícia!

Incomodada, ela aumentou o som da vitrola. Sua dança intensificou-se. Elvira já não se sentia mais ela mesma. Era uma outra pessoa sem seu corpo. Bebia o vinho e dançava.

Seu assassínio a modificou.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 18/06/2023
Código do texto: T7816757
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