Água
Não deve haver calamidade maior do que a falta d’água. Quando isto acontece em nossa própria casa a coisa ainda pode ser contornável; podemos recorrer ao vizinho, a um carro pipa ou algum poço artesiano, se houver por ali. Mas quando se trata de uma cidade inteira perde-se o controle da situação e o caos se apresenta. Foi o que ocorreu em 2008 naquela cidade, e em pleno verão de quase quarenta graus. O pior é que não foi um dia apenas ou mesmo dois ou três. Foram semanas de total seca e desespero. Além de não chover, o que poderia ter amenizado o sofrimento do povo, o sol e o calor não davam trégua e aquilo entrou para a história da cidade e nunca mais foi esquecido. Não era sertão nem interior e sim uma cidade com cinco milhões de habitantes a menos de cem quilômetros do principal centro urbano.
Ninguém consegue explicar, até os dias de hoje, o que deu origem a tal fenômeno. Pensou-se em crime, boicote na rede de abastecimento, mas a nenhuma conclusão se chegou e as investigações continuam. É certo que houve alertas à população gastadeira que nunca havia lidado e nem se preocupado com tal carência, mas a prolongada falta de chuvas poderia ter sido um aviso. Contudo, semanas sem água, uma gota sequer, ninguém esperava; mas tudo permaneceu, e continua, envolto em mistério.
O costume de ter água em abundância pode fazer, e geralmente faz com que se desdenhe a possibilidade de esse líquido um dia vir a faltar. Mas é fato a preocupação em escala mundial com uma futura escassez de água no planeta. Não faltam avisos e conselhos das autoridades sobre como utilizá-la corretamente; é o clássico ‘sabendo usar não vai faltar’. Na cidade em questão as pessoas, pelo fato de nunca terem passado por este problema, não valorizavam devidamente o precioso bem, que é a água. Lavavam suas calçadas com borracha, empurrando para a rua, para o bueiro ou para a calçada do outro, folhas de árvores, papéis, plásticos; coisas que poderiam ser simplesmente varridas e catadas, mas preferiam o meio mais cômodo. As garrafinhas de mineral eram encontradas nos cantos do meio fio, embaixo dos bancos dos coletivos, ainda com água que poderia ser aproveitada. Os chuveirinhos de praia viviam abertos entre um banhista e outro que passavam por ali para tirarem o sal do corpo. Não se prestavam a fechar a torneirinha até que alguém o reutilizasse e a água descia pelo piso de madeira indo se perder na areia; um lamentável desperdício. Os chafarizes das pracinhas eram ligados dia e noite sem a mínima necessidade.
Mesmo em se tratando da mesma água que vai e que vem, nesse movimento sempre se perde uma parte dela; e isso somado, ao final de horas de funcionamento, imagina o gasto que não representa. Se estes flagrantes estavam disponíveis para qualquer um testemunhar, não é difícil ter ideia do que faziam em suas casas em se tratando de banhos, descargas, lavagem de roupa, etc. É melhor nem calcular.
Por tudo isso, e mais a falta da chuva, começaram a sentir que escasseava o precioso líquido. Numa manhã faltou água. Pessoas foram surpreendidas embaixo do chuveiro, ensaboadas. Recorreu-se ao vizinho que não podia ajudar porque passava pela mesma escassez. Esperou-se, aquela tarde, a noite; nada. Usou-se o suprimento que havia em reserva. Uns recorreram aos poços, os que tinham poços em seus quintais. Outros - os que podiam pagar por isso - encomendaram carros pipa. Já iam pelo terceiro dia e nenhuma água subia pelo cano ou descia pela torneira. A coisa começou a ficar preocupante. Muitos começaram a faltar ao trabalho por não conseguirem realizar o ato simples de tomar um banho. Imagina as consequências disto. Nas ruas arborizadas viam-se multidões espalhadas em torno das árvores, disputando um pedaço de sua sombra para fugirem ao sol inclemente. As praias lotaram-se. Os dias foram passando e só faziam aumentar as filas dos hospitais e diminuir os estoques de águas, refrigerantes e de cervejas de todas as fábricas.
Desesperadas pela situação alarmante, as pessoas começaram a deixar a cidade. Só que havia um problema: a rodoviária, os terminais de ônibus e a ferrovia pararam todos de funcionar pelos motivos já citados. Os que possuíam automóveis conseguiram dar o seu jeito, mas eram a minoria. Houve caronas, estradas repletas de acenos, campings ao longo da via. Enfim, as palavras não conseguem resumir sequer o dantesco de cada cena; viu-se gente bebendo a própria urina, outros ingerindo água do mar, das valas e tantos outros desabando de sede e de desidratação. O ar, carregado de poluição, fazia doer as vistas; o horizonte estava esfumaçado; respirar tornou-se uma ação quase impossível. Os homens do corpo de bombeiro, magros e abatidos, faziam o que estivesse ao seu alcance para não verem uma catástrofe ainda maior. Como não podia deixar de ser, incêndios aconteceram e se não fossem os helicópteros e suas mangueiras improvisadas não dá para se avaliar o que seria então.
Além de apagarem os fogos que se formavam em pedaços de mata, barracos desprotegidos e outros que surgiam repentinamente do nada, eles içavam idosos e crianças que precisavam ser removidos. O céu era repleto dessas potentes máquinas voadores, tão crucialmente úteis numa situação como aquela. Relembrando a cena, vista agora pelo lado pitoresco, é como se um espetáculo de marionetes ocorresse, tal o número de gente, parecendo bonecos manipulados por cordas . Se pudesse ser vista por algum ângulo alheio ao que acontecia, entender-se-ia tratar de uma cidade repleta de desocupados, tal o número de pessoas em suas praias. E não havia de fato local mais propício, tamanho e insuportável era o calor. Os locais privilegiados, onde houvesse um ar fresco correndo, a cobertura de um quiosque, a marquise de um estabelecimento é para onde se abalavam os que não queriam expor-se diretamente ao sol.
Até chegar o socorro de outras cidades, tardio devido às péssimas condições, sofreram-se muito, vidas se perderam e, acima de tudo, pensou-se bastante em como é primordial valorizar aquilo que parece um bem natural. Usando com parcimônia tudo que chega até nós, mesmo em abundância, para que se tenha indefinidamente.