A consulta
-Quem gostaria de começar?
-Eu começo doutor!
O som ensurdecedor do alarme perseguia-me a cada passo. Dentro de minha liberdade limitada, onde posso voar por todos os continentes, mas sempre preciso voltar. Quando o alarme toca, não existe escolha além de retornar da libertação, retornando à prisão que tanto amo, aquela que tanto me permite ser livre, mas também enlouquece-me.
A fábrica precisa produzir novamente, visto meu uniforme, a máscara já deteriorada pelo tempo, como se estivesse prestes a rachar. “O show deve continuar” diz meu carcereiro, mesmo nunca me maltratando ou me aprisionando à força, eu sempre obedeço. Não sou obediente por respeito, minha liberdade tem preço e se não oferecer um pouco de mim para seguir onde estou preso, quando então conseguirei alçar voos?
Minhas asas custam caro, a libertação custa caro, ser feliz custa caro, mas por que eu preciso seguir preso? Já não recordo meu nome ou quem sou. Já não distingo-me de meu uniforme e máscara. Talvez eu sempre fosse fantasia, talvez eu exista enquanto encenar uma nova obra, um novo espetáculo.
-Eu compreendo o que você quer dizer, também me sinto assim, mas de uma forma diferente:
As páginas nunca terminam. Quanto mais leio e escrevo a história que Deus criou, mais anseio escrever uma obra perfeita. Eu nunca terei chance de ler o livro, mas deixarei uma leitura leve e impactante para os interessados em meu legado.
Sigo preso no caminho que criaram para mim, destino, tempo ou Deus me aprisiona, mas ter um sentido me liberta. Um motivo para chegar em casa e escrever o manuscrito perfeito, um motivo para seguir fantasiando-me e voltando a produzir para as fábricas. Mesmo com as mãos sujas de graxa após uma obra, o homem à televisão anseia mais e mais. Mesmo que entregue-lhes a nova bíblia ainda precisaria criar uma sequência.
-Obrigado por compartilhar conosco seu conto.
-Mais alguém deseja falar algo?
-Eu, eu desejo falar!
Outra noite não consegui dormir. Não descobri onde fica esse maldito interruptor. Quando deito a cabeça ao travesseiro as vozes começam. Os sussurros do silêncio. Os gritos da escuridão.
Tentei desligar o interruptor de todas as formas, mas nenhuma funcionou. Nasci abençoado e amaldiçoado. Nasci criativo, a mente não fica quieta mesmo sufocando-a. Viaja para longe em diversos universos. Eu gostaria de não pensar! Decidi-me juntar à minha mente. Vou viajar para longe.
Essas foram as palavras que eu li em uma carta de suicídio, não sei se era um desabafo ou suas últimas palavras. Aquele garoto parecia tão perdido e tão confuso, parecia… Eu.
Identifiquei-me com o rapaz triste e melancólico, sentindo-se sozinho e abandonado à rua. O que posso eu fazer para ajudá-lo? Palavras? Eu escrevo-as todos os dias e nem mesmo elas impediram-me de escrever a minha carta de despedida, quem dirá a desse garoto? Mas… Eu deveria fazer algo, certo? Eu deveria abraçar sua dor, beijar suas cicatrizes e dizer que vai ficar tudo bem. Nem sempre está tudo bem e qual seria o problema em admitir que estamos tristes? Ser sinceros consigo mesmos. Sabemos que todos estão fartos, mas ninguém diz as verdades sentados à mesa.
Espero que aquele garoto esteja desabafando e que sua vida não tenha chegado ao fim. Assim como ele já escrevi cartas, entretanto suportei o nada crescente dentro de mim.
-Bhram! Você já tomou seus remédios?
-Ele está delirando de novo! Anda, toma logo essas pílulas. Doido desgraçado.
(Rafael Santos)