Verbo Defectivo
Percebeu-se a esmo no mundo quando vislumbrou-se sozinha, a ouvir Maria Bethânia cantando uma música de Chico Buarque, o volume baixo no velho rádio herdado da avó, uma edição antiga de Mrs. Dalloway sobre a cama desarrumada e a mão enfaixada com gazes ensopadas de sangue – em decorrência da violenta porrada no espelho que dera durante a tarde.
O uísque já havia acabado. Não tinha dinheiro para mais nada. As contas estavam vencidas e estavam para cortar a luz em alguns dias. Havia mais de quinze dias que não dava as caras na escola em que trabalhava. Abandono de cargo público. Não aguentava aquelas crianças. Não suportava ouvir a voz de mais ninguém. Estava derrotada no jogo da vida.
Uma dor insuportável corria-lhe o corpo. As costas doíam, os cortes de vidro na mão só não eram piores que as dores que sentia em seu interior. A angústia tomava-lha pelo pescoço e sufocava-a com extremo ímpeto. A impotência do ato de se matar fazia-lha, sôfrega, desistir de querer viver também. A inação era seu nome do meio.
Apercebeu-se a fumar o último cigarro que restava no maço e via o sol ir embora detrás de uma nuvem pela janela. Os dias de sol havia muito se tornaram dias nublados para Selma. O terror corria-lhe a espinha a pensar que sobreviveria o dia seguinte e perpassaria pela mesma falta de vontade.
Que insignificante se tornara! Não conseguia terminar de ler um artigo de jornal, não assistia mais a nenhum filme de Fellini completo, não entendia mais o significados do verbos. Selma não se conjugava. Era um verbo defectivo.
Dormiu aquela noite em posição fecal a desejar a inexistência. Acordava toda hora a perceber que ainda estava viva.
A frustração tomou-lha o espírito ao perceber-se pronta para mais um dia ensolarado na manhã seguinte.