A ÚLTIMA FESTA DE SÃO JOÃO

 

 

Mal acordei e me deparei com a janela aberta como a me convidar a ver o tempo. Vi que ainda era madrugada, porém um pequeno clarão anunciava que a manhã em pouco tempo chegaria. Eu  acordei nesse dia mais cedo esperando já ter amanhecido. Do décimo andar do meu apartamento vi as luzes e bandeiras que enfeitavam os prédios da rua e percebi que a homenagem a São João estava à vista. A cada ano essa festa junina chegava mais cedo e nesse exato momento já estava ali. Uma alegria sem tamanho tomou conta de mim. Momentaneamente imaginei que ainda fosse tarde da noite, pois quando estava só normalmente eu acabava trocando o dia pela noite. Era o meu hábito trabalhar quando me dava vontade, de comer alguma coisa quado tinha fome e só dormia quando tinha sono.

 

Gostava dessa minha solidão temporária. A esposa estava no trabalho como enfermeira em um turno que muitas vezes ocupava 24 horas do seu tempo, os filhos e netos permaneciam nos seus afazeres. Meu tempo era pouco para fazer o que gostava: viajar e escrever. Nessa fase da vida mais escrever do que viajar.

 

A bem da verdade  nesses últimos dias tinha andado no ócio, vagando pela casa, pensando em viajar já que não tinha inspiração para compor algum texto,  as janelas fechadas, numa penumbra de aconchego até legal. Desde que a empregada foi embora e a faxineira também, eu andava assim, só fazia o que queria e na hora que tinha vontade, era como se estivesse de férias da vida, se abrisse o computador digitaria um novo romance de modo irretocável, sem a necessidade de consultar algumas anotações prévias. Se fosse viajar escolheria uma cidade tranqüila, com praia de águas mornas e depois me recolheria em algum hotelzinho simples para não chamar muito a atenção, era certo que em uma nova "aventura" em pouco tempo estaria me envolvendo.

 

Percebi que as luzes e bandeiras da rua me deixavam um pouco ansioso. Logo eu, bem-humorado, alegre, aquela figura que nada reivindicava, que tinha tudo de que precisava para ser feliz.

 

Logo entendi que a proximidade desse evento junino era que me deixava dessa maneria. Conclui que gostaria de mais uma vez ser o dono da festa, como tinha sido por tantos anos. Não se lembrava de como esse tipo de divertimento havia passado para as casas dos filhos. Eu e a esposa sendo convidados, só levando comidas e bebidas. Me deu uma vontade louca de ter um jantarzinho de volta naquele ano. A sala iluminada, o envolvimento com a comidas, as bebidas, os enfeites, a expectativa de fazer o melhor, como sabia tão bem. Ter todos eles ali junto de mim, grandes e pequenos, ouvindo a barulhada da festa, o tinir dos copos, o som da música, o aroma dos assados. O apartamento outra vez estaria cheio de vida e alegria. Já que a festa seria ali era preciso, portanto, começar a me organizar. Tinha a cabeça ótima e não havia necessidade de listas. Eu e minha esposa sempre agíamos assim. Em primeiro lugar pediria a esposa que mandasse um recado à empregada e outro à faxineira. Que viessem, as folgas haviam acabado. Dessa vez seria uma comemoração especial,  chamaria uma banqueteira para nos ajudar para que trouxesse seus últimos cardápios. Era preciso buscar uma toalha branca de renda. Mandaria separar e passar o ferro nos guardanapos de linho, organizar talheres tirando o faqueiro das gavetas, dar um brilho em tudo e escolher cristais e a porcelana mais delicada. Era preciso também tirar os enfeites preciosos do guarda-roupa e arrumar um São João inesquecível. Iria até a adega, pegaria um bom vinho de ótima safra. Nesse ano até as crianças de dez anos iam poder ter dois dedos da bebida para aprenderem a brindar. Pediria que todos se servissem com pamonha, milho verde, canjica e quentão. Passava em revista os uniformes dos funcionários e verificaria as luvas dos garçons para que estivessem em perfeita ordem.                                                        

Precisava chamar uma boa costureira e deixar a seu cargo o vestido para aquela noite. Saber dela se havia uma tendência de cor para as festas daquele evento junino. Pedir ao filho mais velho que fosse ao banco e tirasse uma boa quantia para qualquer eventualidade. Não queria competir com as filhas e as noras com seus trajes matutos. Era preciso estar na minha melhor forma. Lembrei-me de que num dos últimos almoços de família a netinha mais nova olhou bem para mim e perguntou:

 

  – Vovô, quantos anos você tem?

 

Enquanto pensava numa resposta lembrei-me de alguma coisa referente aos traumáticos 70 anos e fiquei sem saber o que responder. Na verdade, com certa vaidade, trapaceei tanto com datas que acabei não sabendo minha verdadeira idade. Ia ser preciso olhar o documento para poder descobrir. A neta, que foi chamada por alguma outra criança, não esperou a resposta, talvez minha idade fosse mesmo, ainda, os tais 70 anos.

Pediria para que não avisassem minha esposa, que estaria para chegar do seu turno de trabalho, sobre a festa. Seria uma surpresa maravilhosa para ela. Pensei assim, imagine chegar na véspera e saber que seu lar teria uma daquelas antigas e verdadeiras festas juninas.

 

Devia ligar a tv ou ler os jornais e saber o que estava acontecendo na cidade e no país, alguma peça de teatro em cartaz para conversar com as filhas e noras de uma maneira atualizada. Elas eram bem informadas e articuladas. Era preciso saber como andava a situação política, seria boa ideia? Na verdade eu não ia precisar saber nada disso, nem mesmo treinar uma conversa, digamos assim, descolada.

 

Com a esposa presente tudo ia fluir naturalmente, com sua alegria e seu encanto ela era capaz de iluminar uma cidade inteira. Eu já me via na festa, procurando-a com o olhar. Iria  vê-la falando dos seus pacientes no hospital, abraçando os netos adolescentes, elogiando com toda sinceridade a elegância da nossa filha menor. E no momento seguinte, já cercada pelas crianças envolvidas com suas palavras, contava que no seu trabalho tudo era feito com dedicação e amor. Seu olhar cruzaria com o meu que, com carinho, dizia para mim que estava adorando minha última invenção: a de ter todos ali naquele São João de sonho. Visualizava tudo e antecipava que a festa já estava acontecendo. Ia chegar a hora dos comes e bebes e todos iriam vibrar com a música caipira tocando e o cheiro das comidas incensando o ambiente.

 

Com o pensamento na festa ouvi surpreso o barulho de alguém que abriu a porta da frente com a sua própria chave. Não podia ser outra pessoa senão ela, só que eu me enganei redondamente, não era a minha amada esposa. Era um cunhado meu que adentrava para pegar alguns documentos que precisava e ali estava a mando da minha esposa. Estava eu sentado no sofá e me levantei imediatamente para atendê-lo e perguntei o que estava acontecendo. Ele simplesmente me ignorou e se dirigiu para o quarto do casal, mesmo eu implorando para que me ouvisse. Fui atrás dele e lhe informei que uma festa estava em planejamento. Era tudo uma grande esquisitice. Ele parecia não me ver e nem me ouvir, o que me deixou desesperado. Minutos depois entrou mais outra pessoa, alguém do conhecimento do meu cunhado. Conversaram e eu ouvi perfeitamente quando se referiram a mim. Disse para essa segunda pessoa que eu tinha morado ali com a irmã dele e que foram muito felizes. Disse que eu tinha morrido aos 70 anos e que o apartamento estava a venda. Tentei que vissem que eu estava ali bem vivo e que o apartamento não ia ser vendido coisa nenhuma. Encontraram meus escritos, procuraram saber se haveria contos ou romances inéditos, muita coisa estava no computador e até enalteceram o meu trabalho como escritor, me deixando lisongeado. Eu ouvia tudo aquilo e me lembrava da minha derrocada irremediável aos 70 anos, nítida e detalhada, como costumava escrever minhas cenas. Sabia que meu último conto, interrompido, não chegara ao fim. Tudo estava ali naquele computador que começaram a levar junto com outros objetos. Me senti impotente para deter aqueles dois que nem sequer olhavam para mim.

 

 

 

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 26/04/2023
Código do texto: T7773315
Classificação de conteúdo: seguro