Meias verdades
Quando desci para a cozinha de casa, passava de meia-noite e meu pai estava sentado à mesa de jantar, no escuro. Fez um gesto para que eu não acendesse a luz. Dei de ombros e abri a porta da geladeira, para pegar uma garrafa de água.
- Sem sono? - Indagou ele.
- Com sede - repliquei, enchendo um copo e bebendo longamente. - Acho que foram as enchiladas do jantar...
- Provavelmente - redarguiu. - Sua mãe às vezes carrega nos temperos...
Fiz que sim com a cabeça e encarei meu pai. Parecia tranquilo e sereno, naquela semiobscuridade.
- Mamãe também disse que você era um grande mentiroso - atalhei.
Ele fez cara de mágoa.
- O porquê deste insulto fora de hora?
- Você não vivia dizendo que essa casa era assombrada? - Desafiei-o. - Que provas tinha disso?
- Bem... ora, filho... - titubeou ele. - Definitivamente, há algo diferente com essa casa, você tem que reconhecer.
- Não vale dizer que você é a prova do que dizia, - repliquei, guardando a garrafa na geladeira e colocando o copo na pia - já que quando fez a afirmação, ainda estava bem vivo.
Meu pai me lançou um olhar triste.
- Só falta você me dizer que voltei para assombrar a casa apenas para provar meu ponto de vista - ponderou.
- Se essa não era a sua intenção, que tal seguir seu rumo, pai? - Desafiei-o. - Ou aquilo da recompensa aos bem-aventurados também era mentira?
Ele me pareceu ligeiramente aturdido.
- Nem sei o que dizer... a morte nos faz encarar as coisas por um ângulo diferente, devo admitir. Tive que descartar muitas das certezas que tinha.
- Mas certamente, há uma vida após a morte - constatei. - Tanto que está aqui, falando comigo.
- De fato. Mas todo o resto... não era nada do que acreditei um dia.
- Talvez seja finalmente a hora de rever os seus conceitos - repliquei, braços cruzados.
Ele fez um gesto afirmativo.
- Sim, farei isso. E poderia me fazer um último favor?
- Dependendo do que vai pedir...
- É só dizer à sua mãe que a casa realmente é assombrada.
Um sorriso maroto começou a se desenhar no rosto dele.
- Não é nenhuma mentira, correto? - Insistiu ele.
Não, não era. Na manhã seguinte, quando relatei minha conversa noturna, suspeitei que ela contava mentalmente até dez antes de me dar uma resposta.
- Ele não vai mais voltar? - Indagou.
- Desde que você não o conteste... - sugeri.
Minha mãe permaneceu em silêncio e, deste dia em diante, tivemos paz.
- [25-04-2023]