Nascimento

Grama.

Era o que havia por todos os lados. Pisar a grama com os pés descalços é algo delicioso de se fazer, ainda mais se as pontinhas do mato entram no meio de nossos dedos. A grama não pode estar muito alta, senão fica muito fofa, e aquela sensação de cócegas esvai-se. Não é muito bom sentir muitas cócegas, mas na medida certa, é prazeroso.

O casebre feito de madeira e barro protege dos raios de sol matutino o café da manhã sendo feito no fogão de lenha. A fumaça pela chaminé denuncia que o pão está assando e quase pronto. Os pássaros acordando, juntamente com o cair das gotas de orvalho, que escorregam vagarosamente através do contorno das folhas, atravessando toda a sinuosidade até encontrar o ar livre. Depositam-se na grama e encontram, também, os pés descalços.

— Booom! Booom!

Ribombares no céu azul assustam o corpo descalço. Um salto, um pulo. Um sobressalto. Pancadas martelando em sua cabeça o atormentam. A calmaria da música bucólica dá lugar a marretadas em seu cérebro, que ressoam em todo o seu corpo. Ele sente as pontadas, sente a ribombada atravessar todos os seus nervos. Estremece por completo, mas segue.

Segue.

De repente, começa a se acalmar. É conduzido pela levada que, com o tempo, vai ficando rítmica. As pancadas vão cessando, pouco a pouco, e aqueles golpes drásticos transformam-se em um andamento rítmico. Agora, a golpes de metrônomo, começa a pulsar em seu sangue um alento bluesístico.

Mas, antes. Sempre tem o antes.

Gritos de harpias, lá ao fundo, atormentam sua cabeça já desnorteada pelas marretadas. Gritos agudos. Gritos de sereia, que o chamam para o lugar sem-lugar. Sereias cantando, chamando.

Ele fica.

Ele vai.

Ele permanece, estando.

Cambaleando, hipnotizado. Os pés não sentem mais a grama. Ele segue o som, segue o ritmo, segue o chamado. Ele só vai, sem saber mais de onde veio e nem para onde está indo.

Anjos. Ouve anjos.

Vê anjos alados, com suas asas recolhidas, num coral. Seriam anjos ao invés de sereias? Seriam sereias anjos? Vozes-coral. Vozes em uníssono. Naquele momento, não conseguia mais pensar. A emoção quente já não estava além de si, mas dentro. Ele sentia aquilo desde o primeiro chamado, desde a primeira nota ecoada pelas cordas vocais angelicais. Ele sente a vibração musical preenchendo todo o corpo.

Vozes humanas trazem o som do coração. Um coração pulsando em seu ritmo, ao fundo da voz. Seguindo sua caminhada enquanto os compassos são preenchidos com as estrofes. Um string de fundo, órgão que reproduz as vozes angelicais. O coração continua a bater.

Batidas.

Levadas.

Coração batendo e vida pulsando, levemente pulsando e pulsante.

Distorções. Mas o blues continua. Continua em sua levada inebriante. Vozes, mais vozes. Gritos ao fundo, pedidos. Um som se aproxima lentamente. Um avião? O string fica contínuo, não tira a mão das teclas. Um grito.

O avião se aproxima.

O avião se aproxima.

Forte, muito forte.

Batidas, o som está muito alto!

Você ainda está aí?

O avião se aproxima!

— Uoooonnnnnnnnnnnn!!!!!!!!!!!!

— Ahhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!

— Fiuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!!!!!!!

NASCIMENTO.