A caneca
Ricardo realizava um esforço diário em ignorar. Surtiria um efeito absoluto, factível, se acaso ele estivesse em um outro lugar, distante daquilo que tinha horror profundo mas que teimava em ser, estar, diante de sua percepção?
Mas o que era? Uma pessoa que não se deseja ver, por ter sido protagonista de um evento traumático no passado, ou promotora de ações que prejudicam no presente, geralmente é aquela que motiva um esforço assim. Afinal, você tem de conviver. Afinal, o inferno é o outro. Assim disse o francês.
Contudo, o problema era uma caneca.
Ela media exatos 7 centímetros. Toda vermelha em sua parte externa - incluso a alça - e branca por dentro. Certo modo bonita. Não haveria motivo para que um inofensivo objetivo fosse gatilho de coisas ruins à psique de Ricardo. Ninguém, além dele mesmo bebera nela. Uma entre tantas canecas acumuladas no armário da cozinha.
Ignorar o que não se pode explicar e que cotidianamente afronta era o que restava todavia. Incluso se acaso se mudasse para um outro país na perspectiva de nunca mais vê-la - a caneca - de nunca mais com ela estabelecer relações labiais, visuais.
Porque houve um dia que, por um descuido do próprio Ricardo - um desses descuidos da mão... - a caneca se espatifou no chão. Cacos recolhidos na pá pela vassoura. Cacos no lixo. No dia seguinte a caneca intacta em cima da mesma mesa da qual caira. Ricardo conjecturou a possibilidade de ser uma outra, porém, a certeza - que por vezes de tão certa é equívoca... - de que apenas aquela vermelha tinha. E que no fundo de um saco de lixo preto depositado no lixão da cidade estava: toda desmembrada. Ex-caneca. Agora pedaços.
Não.
Um novo descuido da mão, não proposital, puro acidente novamente. Mesmo destino aos cacos da falecida caneca. No novo dia seguinte a mesma - conservadíssima!
Para não haver dúvidas que não se tratava de um delírio, quebrou em pedaços com um martelo filmando a cena em seu smartphone. O resultado?
Quebrou-a dos mais diversos modos algumas dezenas de vezes. Jogou-a no fundo de um rio com chumbos pesados amarrados nela. Foi a um distante país enterrando-a no solo daquela pátria em cova profunda que ele mesmo cavara. Doou a caneca. Presenteou pelo menos uns seis conhecidos. Atirou na caneca com uma AK-47. Ao pular de paraquedas, à esquerda do local de pouso, da alta altitude na qual estava flutuando, havia o oceano Atlântico e nele lançou a caneca...
Ricardo vem ignorando todos os dias o objeto a fim de que não enlouqueça. A fim de que tenha olhos e ânimo para as milhares de coisas por se fazer neste mundo. A fim de que viva de fato.
São José, 12 de fevereiro de 2023.
Cleber Caetano Maranhão.