Um dia hei de criar uma convenção para enterrar as estrelas

Queria poder brincar com as estrelas, embaralhar as constelações e cingir o céu de um azul profundo e perene. Dito isto, é bom que se saiba dos dias de minha infância. Fui traquina, mudei o céu de lugar em desenhos na terra e até criei um céu marrom de estrelas brilhantes com as pedras do meu jardim.

Eu juntava todos os dias o céu e a terra, o céu era marrom e a terra tinha jeito de terra mesmo, era difícil separar os dois quando desenhava no chão minhas traquinices de garoto do interior.

Eu era do mato, meio matuto, mas muito astuto e pouco sensato. Em minhas peraltices fui à lua e voltei uma centena de vezes, não hasteei bandeira, mas em minhas contas fui, sim, o primeiro garoto a descer na lua e visitá-la do chão, o qual é também lugar de descoberta.

Gostava mesmo era de criar um universo a partir do chão, sempre tive desconfiança de tudo que não se cria a partir dele, e aí vai uma lista… não entendia como a lua flutuava no céu e, por qual motivo, o sol se escondia ao entardecer num tal ocaso, que partia todo dia sem atraso, e a lua durante as noites na minha rua era um arraso, despertava paixões e até mesmo o marasmo.

Não sabia quase nada de estrelas, nem como brilhavam a noite e se escondiam de dia, mas entendia de sua timidez e até nutria certa identificação com elas.

Destas tantas aparições e sumiços me veio a ideia desta convenção, criar um enterro digno a elas (as estrelas), que se pratique universalmente todos os dias.

Quando mirar o ocaso, muita atenção, veja-o com olhares de criança que não perde a esperança no porvir da imaginação, preste reverência a partir da alvorada, depois de uma vigília longa durante a noite, que é quando as supernovas desaparecem depois da grande explosão. Fique atento aos sinais, desde a estrela-cadente que empresta o céu para a lua brilhar, ao romper da alvorada, quando elas (as estrelas) já não devem voltar...

Faça um pedido aos astros, que com a sua luz representem a cruz, um convite às estrelas. Deixe a imaginação fluir e que noutra tarde você ainda possa revê-las, mas faça o pedido com o coração despido de arrogância, traga a infância no peito, afinal, todos têm direito a vivê-la um pouco mais.

— Ah, estas estrelas, nascem e morrem todos os dias há incontáveis eras, e nunca pensaram sequer num enterro para elas.

Lembre-se sempre que é na alvorada o silenciar das constelações, logo façamos nossas preces em seu cortejo. Havemos de acordar com o beijo do pai sol em faces ainda serenas da noite em que somos cuidados pela mãe lua.

Na alvorada é quando o romper do silêncio dá lugar ao grito insone do universo, o choro manhoso dos passarinhos anuncia o esmaecer das estrelas, a luz própria dos astros se renova e os mistérios do dia se apresentam de formas sutis.

Com as estrelas no porvir da aurora enterrei também o vazio ainda maior que havia em mim desde os tempos de outrora, compreendi que ao velar as estrelas, deixo partir também minha insensatez de adulto, que pensa que sabe de tudo e nada sabe, inclusive de estrelas...

Quando estou no quintal e vejo o sol transpassando sua luz pela janela do quarto, refletindo também no espelho, são as duas cruzes, os sinais de um enterro, uma a ficar no vitrô da janela e a outra a refletir no espelho...

DestinoPoesia
Enviado por DestinoPoesia em 20/01/2023
Código do texto: T7699813
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