UM QUARTO DE HOTEL
Acordo. Estou em um quarto de hotel. Boa cama, banheiro ao lado, pequeno, mas limpo. Contrastando com o quarto em si que era enorme e mal cuidado. Tenho certeza que ele está localizado no final da rua dos Gusmões, na Cracolândia. Não tenho a menor idéia de como vim parar aqui. Alguém pagou meu horário ou pernoite, com certeza. Porquê?:
Várias ideias me passam pela cabeça. Pode ser uma armadilha, Um lote de droga pode estar em algum canto para me fazer de bode expiatório. Se for isso nem adianta procurar. Ser pego vasculhando o quarto é mais incriminador ainda. Uma boa alma pode ter se compadecido de mim, posso ter vindo com alguém e este saiu. De qualquer forma o zelador mais cedo ou mais tarde vai bater na porta avisando que a diária venceu, e vou ter que sair, sem a menor idéia para onde. Na verdade sei. Para continuar vagando pelas ruas da Luz como tenho feito a dias.
Bem, o que não tem solução já está resolvido. Passo a tentar refazer os passos que me trouxeram até ali. Hoje deve ser sexta ou sábado. Estou na região desde segunda feira. Eu deveria ter ido direto para o serviço, mas não aguentei a tentação de parar e fumar " só uma". Mas ao invés de ficar "doido", mas capaz de ir para o trabalho, ensandeci. A memória é completamente confusa. Não sei se juntou com as drogas que eu já havia tomado antes de dormir ou se me doparam com outra coisa.. Perdi a consciência. Quando dei por mim, horas depois, estava no "fluxo", sem dinheiro, sem documento, sem celular e até sem calçado. A volta da consciência não implicou no retorno do julgamento, que acredito ter me abandonado quando saí da estação. Passei a primeira noite andando de um lado para o outro, implorando por droga, por cachaça e por cigarro. Uma "boa" alma, depois de algumas horas, me arrumou um chinelo. Apenas o lançou nos meus pés, nem vi o rosto.
Quando o dia amanheceu meu pagamento caiu. Foi a minha melhor chance de sair dali. Já me sentia livre da compulsão de usar "mais uma a qualquer custo". Mas quem disse que minha vergonha pelo que já havia acontecido e meu vício deixaram. De pária me tornei cobiçado por todo caçador de " frango" Foram dois dias inteiros sendo devidamente depenado por vários espertalhões. Chegou a ser divertido ver todos eles querendo assumir a "paternidade" do chinelo. Até no terceiro dia achar um que se aproveitava de mim com o mínimo de honradez, esperando eu sugerir gastar o dinheiro e sem propostas mirabolantes. Quando querendo alguma coisa simplesmente pedindo e já avisando que não teria como pagar. Tem a mesma idade que eu o "Perninha", mas ele me lembrou meu pai. Um malandro "das antigas". Arrumei um tênis e fiquei comprando cigarro e cachaça para vender com prejuízo, de "meia" com ele. Só para passar o tempo. A bebida e a droga já estavam me fazendo mal e eu mau conseguia usar. Até a noite chegar e a disposição voltar. Durante a tarde teve operação especial da polícia, perdi o amigo na correria. Fiquei dentro de bares bebendo e comentando as reportagens como se fosse " um homem de bem". Cagâo!
O louco aconteceu na madrugada. Finalmente eu (Deus) me toquei que precisava sair dali. Mas ao invés de simplesmente ir até a estação e pegar o trem, do jeito (imundo) que eu estava, decidi comprar uma "grande" quantidade de droga para trocar por uma calça, uma camiseta e uma mochila limpas. Não usei daquele entorpecente. Mas a Cracolândia mudou, algo que, mesmo há muitos dias ali, escapou a minha percepção. Quando ela era fixa, funcionava como uma grande feira livre de tudo o que se pudesse imaginar. Roupas, calçados, artigos eletrônicos. Era comum se dizer que tudo podia se comprar ali. Eu mesmo vi muitos artigos inusitados sendo vendidos (livros, eletrodomésticos, remédios, camarão feito na hora, além de outras coisas inusitadas). Mas com a volta da perseguição policial isso se perdeu, agora só se vende droga, cachaça, cigarro e artigos para o consumo dos tóxicos. Procurei alguém que quisesse me vender o que eu precisava na "pedra", mas não achei. Reencontrei o Perninha e falei da minha intenção, no que ele me apoiou.
Mesmo querendo continuar com as minhas elocubraçôes, a atenção se volta para o quarto de hotel. Volto a olhar com cuidado para as paredes manchadas por infiltração, para o chão sujo. Há, pasmem, uma televisão ao alcance da mão sem controle remoto e um ventilador sem ser de teto ou de parede. Coisas raras nos hotéis daqui (raras não, únicas!). Preciso sair, antes de "dar merda". Só que mesmo tendo essa sensação cada vez mais forte, me mantenho deitado na cama, inerte.
Com todo o absurdo que já havia vivido, daí em diante me é penoso pensar. Quem usa drogas quer ficar louco, essa é a verdade. Na abstinência sempre tive consciência que meu pensamento estava alterado. Faço o que não quero fazer, mas consciente do que estou fazendo. Como se diz em Narcóticos Anônimos: "Vai prá boca chorando, não querendo ir, mas vai!". Agora o que me aconteceu foi algo inédito: Eu atravessei o espelho!! Fiquei realmente biruta!!!
Meu espírito saiu de mim e apenas observava atônito o que meu corpo fazia. Comecei a brincar com a droga, jogando-a de uma mão para outra, enquanto meu colega de uso me implorava para lhe dar um pedaço. Quando a manhã raiou eu simplesmente dei o pedaço para ele e fui para uma rua onde não podia ficar sentado usando. Estava com uma idéia vaga de achar um hotel para pelo menos tomar um banho. Naquela rua, só naquele quarteirão, há quatro. Eu não conseguia ir para nenhum deles. Me via de pé, com uma enorme dificuldade em me equilibrar, sem conseguir sair do lugar. Finalmente me decido a ir uma lanchonete do outro lado da rua, com a fixação de beber uma coca dois litros. Só que chegando na porta eu não consigo me equilibrar e nem explicar o que eu queria. O atendente me dá uma surra com um pedaço grosso de madeira achando que eu "tava dando uma de louco". Uma senhora ficava gritando: chama a polícia!". Comecei a ansiar por isso, por me jogar em frente de uma viatura ou debaixo dos cascos da cavalaria. Depois de apanhar bastante consegui atravessar e ir a uma padaria na esquina. Tropicando fui até a geladeira, peguei a coca e tirei o dinheiro do bolso e paguei pelo refrigerante. Tenho certeza que não fui roubado pela forma que fui tratado depois. Eles me levaram até a lateral da parede na esquina. Ouvia ao longe eles espantando outros viciados que tentavam mexer nos meus bolsos ou levar a coca cola. Mesmo sem o menor equilíbrio me esforçava para ficar de pé. Conseguia mau e porcamente. O que eu, para minha estupefação não conseguia era falar. Nada, nada! Por mais que eu tentasse. A única coisa que eu conseguia era cantar o hino "Sou servo inútil" da CCB. Neste desespero me via vagando pelas ruas pelo resto da minha vida, capaz de cantar apenas aquele hino. Em uma paródia absurda eu tomei o último gole do refrigerante, cantaei novamente o louvor, praticamente gritando. E pensei: "A ti entrego meu espírito Pai. Perdoe-me mas fracassei. E simplesmente caí de cara no chão e perdi a consciência.
Acordei. A primeira sensação era que tudo aquilo tinha sido um sonho, até olhar ao redor e ver que estava no mesmo lugar. Nunca imaginei que chegaria o dia em que me veria desesperado por estar vivo. No meu rosto uma garrafa de água fria, cuidadosamente embrulhada em um papel. Um jovem se aproximou de mim e me perguntou se estava melhor. Me explicou que pôs a água no meu rosto e que podia bebe-la. Contou também que tirou meus tênis e colocou sobre meu peito para não roubarem. Me pede que verifique meus bolsos. Fico surpreso de meus remédios e meu dinheiro ainda estarem comigo. Consigo entender a imensa caridade daquele rapaz, mas não consigo falar nada. Na verdade o amaldiçoei pela bondade de não ter permitido morrer.
- Agora amigo que você está melhor tenho que te pedir para sair daqui. Sou segurança deste pedaço e te deixar aqui pode me fazer perder o emprego.
Fiz em minha vida muitas coisas imperdoáveis. Está é mais uma para acrescentar a lista. Peço para ele por gestos um papel e uma caneta. Escrevo meu primeiro nome, o da minha mãe e o telefone dela e entrego a ele. Tento sair andando rápido depois disso, mas a dor em meus pés é tamanha que quase não fico de pé. Vou me esgueirando pela parede até a Praça Júlio Prestes. Ele me acompanha, tentando me ajudar e me avisando que ligou para minha mãe e que ela pediu para que me colocasse no trem. Concordo com a cabeça sabendo que não vou chegar até a estação. Na avenida tento me jogar em frente de um ônibus.
A partir daí eu não sei o que aconteceu. Caí de cabeça no chão, mas sei que não fui atropelado. Pela forma que me trataram acho que meu benfeitor conseguiu me puxar. A partir daí "fiquei cego". Uma certeza insana de que se agisse como morto, estaria morto. Fui chutado, carregado até a calçada, beliscado, tive o peito amassado. Mas não reagia, dentro daquela idéia insana. Foi só depois que uma ambulância chegou e que fui colocado para dentro, depois de muita insistência dos enfermeiros é que "quebrei". Ainda não conseguia abrir os olhos, mas comecei a chorar copiosamente. Finalmente consegui falar uma frase: Nem para morrer eu presto! (lindo julgamento dito ad nauseum pela minha ex esposa). Foram horas chorando, sem ser capaz de falar ou abrir os olhos. Chorava meu fracasso como pai, marido, profissional, amigo, como ser humano enfim. Devem ter me dado alguma coisa no hospital pois finalmente depois de sete dias consegui dormir. Sonhei com uma enorme Cracolândia que dominava praticamente todo o Centro de São Paulo. Eu circulava por ela com uma facilidade que nunca tive. E o pensamento de que eu não tinha solução, afinal meu vício e maldade estavam tão incrustados que até meu subconsciente se consistia disso.
Acordei para tomar o café da manhã. Um café com leite, um pãozinho e uma laranja. Nunca comi nada tão bom. Faziam seis dias que eu não comia. Voltei a dormir. Acordei com alguém fazendo carinho na minha mão. Era a minha mãe. Voltei a ter outro acesso de choro. De alegria, vergonha e remorso. Finalmente percebo que estou na casa da minha mãe, no quarto do fundo. Volto a chorar, de gratidão e medo do futuro.