Parece delírio.
Dorival, que estava sentado numa cadeira de bar acompanhado do Itacir, parente de consideração por estar casado com a sua prima, olhava para os pés quando suspendeu a cabeça e respondeu com satisfação: - Sim, passou! Hoje eu estou bem melhor!
Dentro, no local onde se encontravam, o ambiente era de trevas, escuro; do lado de fora a claridade era alegre, iluminava tudo e fazia um belo fundo nas costas do Itacir, sentado contra a luz. Ao escutar a notícia auspiciosa ele abriu um leve sorriso de contentamento. Dorival, calado, refletiu ainda: - Era um estresse, eu ficava irritado por qualquer motivo e agia com arrogância. Itacir, como se tivesse ouvido esses pensamentos silenciosos, aprovou com um meneio da cabeça o benefício da cura restauradora.
Já fora do bar e sozinho, ao subir a escada na frente de um prédio, Dorival topou com uma ave espantosa, o formato do bico e da sua cabeça era de um corvo, já o corpo e o seu tamanho era o de uma galinha, parecia ter saído de uma poça d'água e mantinha as asas vagamente abertas, talvez para secarem, e por baixo das penas pretas via-se inusitado malhado branco; seu andar agitado causava estranheza, no fundo ela estimulava pensamentos fúnebres; comportando-se tal qual uma recepcionista de hotel, acolheu-o ainda do lado de fora da entrada e ingressou à sua frente guiando o seu trajeto. Precedido pelo animal, os dois caminharam até o elevador com porta giratória de vidro. Duda, como era conhecido, e mais o pássaro, adentraram no ascensor. Com a máquina vazia, a ave esquivou-se como se estivesse sendo acossada e fugiu para um canto com o bico aberto e o olhar acuado. No lado oposto Dorival ficou parado, sem distender um único músculo, o olhar fixo no corvo com ares de galinha e o desejo de não incomodar o bicho, deixá-lo quieto.
No andar onde o elevador parou, ele mal saiu e se afastou alguns passos, mudou de ideia e deu meia volta, decidiu ir embora. Sem largar do seu pé, o animal com o bico e as asas entreabertas correu ágil e, de novo, entraram na máquina juntos.
No térreo, Duda deixou a ave agourenta entregue a própria sorte e desceu os degraus da escada diante do prédio sem olhar para trás, partiu carrancudo, com a testa franzida e as mãos fechadas prontas para desferirem um soco.
Na rua, deu-se conta de que tudo a sua volta estava encharcado, como se houvera caído uma chuva forte, e, caminhando pela calçada, de cabeça baixa para evitar as poças d'água, viu no chão uma marca de sangue tal qual um pingo que jorrou de uma ferida grande, e ficou impressionado; adiante deparou com um andaime, alto, sem amarras de segurança nem cabo de sustentação. Olhou para cima sem perder a passada por baixo da estrutura de madeira e viu um operário na extremidade superior; homem baixo e atarracado, de costas, usava roupas claras, a cueca ficou à mostra acima do cós da calça levemente arriada; ele jogava massa de cimento na parede lateral do edifício e fitou o Dorival justo neste momento. Os dois cruzaram olhares e ficou nisso. Alguns passos mais e Duda refletiu sobre os últimos acontecimentos: o temível corvo com aparência de galinha, o impressionante pingo de sangue no chão, agora este trabalhador trepado no topo desse estrado de madeira sem segurança. - Este sujeito vai morrer!, sentenciou de si para consigo mesmo. Interiormente, na sua imaginação, viu o andaime desmoronar, o operário cair de costas com os braços abertos, tudo muito rápido. O ruído do desmonte e a queda fatal ficaram para trás. O pior do evento, o prenúncio funesto que se concretizou, este o Duda carregou latente no cérebro e no coração.
Desejando sair daquele lugar rapidamente ele atravessou duas avenidas perigosas até subir a estação onde tomaria um trem para a sua casa. Lembrou-se que, no meio do caminho deveria baldear de uma composição para outra e decidiu confirmar com uma ignota passageira ao seu lado se aquela escadaria diante deles dois que levava até a plataforma era a que ele deveria descer para chegar ao seu destino. A calçada era estreita no alto do viaduto em frente do guichê para comprar o bilhete de viagem, e o volume de carros circulando pelo local era intenso, qualquer descuido, o pedestre corria sério risco de atropelamento. Nessa hora, ele tinha uma flagrante porção de moedas que mal cabiam em suas mãos e sofria para separar o valor da passagem, foi quando uma grande massa de gente começou a circular em volta. Sem conseguir ouvir as orientações daquela moça desconhecida, atônito ele pensou em sofrer um roubo brutal por causa do dinheiro exposto e então elevou as mãos cheias contra o peito. Gritos de desespero que chamaram a sua atenção soaram próximo; Dorival olhou para o lado e viu uma mulher bonita subjugada pela truculência com que um policial branco de meia idade ajoelhou sobre o seu corpo. Com a cara no chão e seus braços seguros pelas costas, o vigilante a imobilizou e a manteve presa. Era uma ladra que foi agarrada imediatamente após cometer um crime de roubo cruel. Nenhum veículo transitava, mas o risco de atropelamento era iminente, todos tinham consciência; apesar do perigo os passantes se aglomeravam e envolviam os agentes da policia no cumprimento de suas funções. E o Dorival ali, literalmente no meio da rua, tão perdido, escandalizado e sem palavras quanto às outras pessoas. Mais um grito de sofreguidão e revolta, e dessa vez era uma jovem magra, de pele rosada, ladra também - roubou um pedestre -, que chegou sendo arrebatada pelo braço nu por um policial de compleição grande e forte que, impassível, lançou-a para dentro de um gradil feito de barras de ferro grossas e espaçadas, dispostas na horizontal, onde ela caiu feito um boneco. Bateu com a cabeça e ficou jogada no asfalto úmido, inerte, toda molhada, braços e pernas parecendo desconjuntados, o rosto pálido, o olhar abatido, o vestido rasgado e sujo. Era um trapo de gente. Triste de ver.
Devido à forte impressão Dorival acordou, aturdido, pois nada fazia sentido naquele sonho terrível. Freud que o diga.
Não fique abalado com as aberrações, caro leitor, foi só uma noite de sonho mal dormida do autor.