UMA LOUCA ENTRE ANJOS E DEMÔNIOS

 

   O sol escaldante torra aquela terra onde a fertilidade não mais existe, outrora já foi um grande pasto repleto de gado e uma imensidão de árvores frutíferas eram vistas, cujos frutos se esparramavam pelo chão até apodrecerem ou servir de alimento para alguns animais e pequenas aves. Anos a fio Lucrécia assistia aquele espetáculo maravilhoso até a sua total degradação. Ela jamais deixou de apreciar aquela terra do alpendre do velho casarão herdado por seus velhos pais, agora totalmente seu, de mais ninguém, pois não fôra agraciada com irmãos, nem sequer tinha parentes, se tinha não os conhecia e nem interessava conhecer. Era uma mulher sozinha e se acostumou com essa vida desde o falecimento dos seus genitores. A velha empregada fôra mandada embora assim que os velhos partiram para o além, ambos morreram com diferença de alguns dias somente. Daí em diante Lucrécia resolveu viver em total solidão, não recebeu sequer algumas visitas que chegaram para saber se ela precisava de alguma coisa. A resposta era sempre a mesma: não preciso de ninguém.

   Lucrécia era apenas uma menina que brincava com uma velha boneca de pano, usava vestidos simples quase aos farrapos, não tinha coleguinhas, mas gostava de conversar com alguém que imaginava ver, além de conversar também com a boneca, que chamava de Lulu e que estava sempre em seus braços, até na hora de dormir. Cresceu sem nunca freqüentar uma escola e quando os pais adoeceram Lenir era quem tomava conta da imensa casa, era uma empregada dedicada e que servia aos patrões com muito carinho, mas Lucrécia não era simpática com ela e a perturbava com palavras ásperas e xingamentos. Seu lugar predileto de brincar era a alpendre, ela e Lulu, sua boneca, estavam sempre conversando, mesmo ela já ter completado dezoito anos. Os "amigos" com quem Lucrécia conversava às vezes entravam em confronto, mas ela dava atenção a todos.

   Os anos se passaram, Lucrécia agora sozinha, já que tinha mandado Lenir embora, fazia somente o necessário para sobreviver, ou seja, a preparação dos alimentos e pouca limpeza, para ela isso não era tão importante. Ela dividiu seus "amigos" em "pessoal do bem" e " pessoal do mal", assim ela os caracterizava e se davam muito bem, ouvia um lado, ouvia o outro, portanto a decisão final do que lhe propunham era sua, somente sua. Ultimamente ela vinha tendo algumas alucinações com o "pessoal do mal" que queria levá-la para junto dele, mas Lucrécia se recusava. Já o "pessoal do bem" lhe dava conselhos e pedia para que rezasse e solicitasse ajuda espiritual. Ela nem atendia um e nem atendia outro, se achava dona de si, apesar de aos poucos indo perdendo a razão, esquecia de comer e de limpar a casa, o que causou um grande acúmulo de sujeira. Debilitada e sem receber visitas ela foi tendo sua saúde comprometida.

   Certa tarde, há dias sem comer nada, pois seu cérebro não estava lhe obedecendo, levantou-se da cadeira onde estava sentada no alpendre, jogou a antiga boneca prá cima e foi até a frente do antigo imóvel já em estado precário. De pé, diante do sol quente e sem noção do que estava fazendo, levantou as mãos para o céu e chamou seus "amigos". Imediatamente vieram os "do bem" que lhe atenderam com presteza, perguntaram o que desejava e se prontificaram a ajudar. Via-se claramente que eram anjos e estavam todos de branco. Ela apenas sorriu para eles. Do seu outro lado surgiram os outros "amigos", os "do mal", que já foram logo gritando com ela. Lucrécia fitou-os bem séria, baixou os braços, ficou em silêncio por alguns minutos e falou:

- Eu quero ir com vocês, já estou cansada dessa vida. Me levem, por favor.

Dito isso, aquelas criaturas, ora vestidas de preto, apenas apontaram para ela e um deles, talvez o líder, disse:

- Já era hora, agora você é nossa.

Um estranho lampejo de felicidade acompanhado de um brilho em seu olhar foram vistos. Lucrécia caiu por terra e cerrou os olhos para não mais se abrirem.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 27/12/2022
Reeditado em 12/09/2023
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