Descalça madrugada

Fria madrugada, em contraste com o

calor que sentia quando levantou para tomar

um copo d’água. Bebericou, debruçada no parapeito da varanda.

A lua, quase explodindo de cheiúra, iluminava o Capibaribe. Do outro lado da ponte, a Estação Central do Metrô, o Museu do Trem, lhe pareceu assustador. Jurava ter visto alguém acenando para ela. Um sujeito esguio, com chapéu antigo, paletó e gravata. A imagem se desfez. Ou voltara ele ao seu século a fim de pegar o trem da madrugada? Acabou se engasgando com a água quando riu ao pensar nisso.

Sempre quisera perambular pela cidade sozinha. O Recife é poético, belo e assustador. De repente aquele pareceu o momento certo. Do alto do nono andar do seu antigo apartamento não avistou ninguém, além, é claro, do sujeito que partiu para o século XIX.

Assim, descalça, abriu a porta e pegou o elevador. De repente estava lá, deitada sobre a Ponte Velha sentindo o Capibaribe respirar. Ah! Sempre teve vontade de fazer isso: deitar sobre a ponte e sentir o rio correr debaixo dela, como sangue correndo pelas veias da cidade. Deixou-se ficar, sentindo o asfalto debaixo da camisola fina e desgastada.

Levantou devagar, num espreguiçar extasiado, e seguiu até a Casa da Cultura, antiga casa de detenção. Haviam braços saindo pelas grossas grades de ferro. Mãos que se batiam e se pegavam. Sombras de rostos desesperados que não emitiam nenhum som…

Um frio na barriga a fez correr dali, voltando pela mesma ponte e seguindo pela Aurora. A lua intensa e curiosa a seguia. Ao longe avistou movimentos em cima da Torre de Cristal, ou Piroca de Brennand, como queiram. Ao se aproximar, esfregou os olhos e voltou a abri-los. Um surreal espetáculo das mulheres de Abelardo da Hora. Com movimentos leves, sensuais e precisos, faziam pole dance em cima da torre. Elas eram imensas, fazendo com que o monumento quase desaparecesse sob seus corpos. O mestre sobre o discípulo?

Sentou no murinho e ficou ali, de camarote, olhando as manobras das avantajadas mulheres nuas sobre a Torre, que agora, parecia tão pequena.

Foi quando escutou um grito de um rapaz que

passava pela rua.

- Ela vai se jogar, a Lôla vai se matar!

Correu dali para ver o que acontecia. Ele foi na frente e ela o seguiu. Pararam num prédio velho na Rua da Guia. Uma senhora ameaçava pular da janela. Devia ter uns oitenta anos, mas parecia muito mais. Cabelos enormes e brancos. Estava a pele e o osso. Gritaram para que ela fosse dormir. Ela falava coisas desconexas e gritava pelo nome de um homem.

- Bento! Estou aqui! Está chegando?

Não entenderam nada mais. Ela desapareceu da janela. Talvez tenha voltado a dormir e desistido do suicídio. Sempre ameaçava se jogar, até que um fio de esperança a segurava pelos cabelos e voltava a sonhar com seu amado.

O rapaz se apressou em contar que ela era de um antigo bordel. Conta-se que era belíssima e muito disputada pelos homens. Até que conheceu um marinheiro pelo qual se apaixonou perdidamente. Chegou por duas vezes ao Recife. Na segunda vez prometeu que viria buscá-la e iriam se casar. Desde então ela o espera, dia após dia. Comendo mal e dormindo mal à medida que os anos se passavam e ele não chegava. Enlouqueceu, foi o que disseram. Nunca mais quis saber de nenhum homem.

A manhã já apontava quando resolveu voltar pra casa. Correndo descalça antes que alguma nova surpresa surgisse.

Acordou com a roupa que tinha saído na véspera. Todo o corpo doía. Lembrou que havia bebido um pouco além da conta na noite anterior e desabado no sofá. A cara estava péssima.

Ao seguir para o chuveiro pensou se alguém a tinha levado para casa. Mas não, lembrou que

tinha ido sozinha, pois os amigos preferiram ficar.

Mas então, de quem seria aquele chapéu largado sobre a mesa da cozinha?

Taciana Valença

TACIANA VALENÇA
Enviado por TACIANA VALENÇA em 09/12/2022
Código do texto: T7668087
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