1160-A MULHER QUE VIROU LIXO
Dona Izordina acordou a cedo para ir á missa, como fazia todos os dias, religiosamente. Trocou a fina, curta e fria camisola pelo único vestido já muito usado. O frio da manhã passava por entre as dobras do vestido antes justo ao corpo, agora largo porque ela está cada vez mais magra.
— Previso ajustar esta saia; Tá larga e comprida demais. A barra tá arrastando no chão.
Enfiou os pés nos chinelos-de-dedo. Sentiu as solas geladas.
Pegou a pequenina bolsa que estava sobre a mesa de cabeceira, que nada mais é do que um caixote de madeira coberto por uma toalhinha de crochê. Dentro estava o terço, cujas contas de branco marfim quando novo, estão amarelas de tanto manuseio,. Foi até o outro cômodo, que é cozinha e sala ao mesmo tempo. Também é onde dorme Zeca Bigodinho, nas madrugadas em que chega tão tonto que não aguenta caminhar ladeira acima, até o seu barraco.
Encheu a bolsinha com bolachas Maria, que, como sempre, ia mastigando pretende ir mastigando a caminho da Igreja.
Saiu do barraco e amarrou por fora a porta, com um cordão velho de amarrar sapatos. Chuvinha miúda na cabeça e nos ombros. Desceu devagar procurando inutilmente se esquivar da garoa grossa.
— Meu Deus, se escorregar e cair........
Afastou seu pensamento, pois sua fé em Deus é grande. ELE é o seu único e último arrimo.
Após uns cem metros de descida, chegou á ponta do asfalto, que é o fim da rua. Segue pela calçada, de cimento desgastado pelo uso e pela má qualidade do material. Encontrou abrigo sob estreitas marquises e toldos das lojinhas ao longo da calçada. O asfalto da rua brilhava, refletindo as luzes dos postes que ainda estão acesas, na manhã cor de chumbo.
— Se tivesse um filho de Deus que me desse uma sombrinha...
Tinha pressa. Passos curtos e pouco firmes
—Quero chegar antes do pastor. Prá poder rezar o terço.
Sema saber, ela praticava um esranho sincretismo. Sempre fora católica. Apóstólica, nunca, pois nunca levara inguém á conversão. Nem seus três filhos. Romana, jamais. Não sabia nem o que isto significava. Papa... O pastor era contra, e ela nem se dava conta. Rezava seu terço, ouvFa as pregações, que lhe agradavam na parte da vida de Jesus.
.Se antes fora de frequentar a Igreja de São Braz, que ficava em outro bairro, agora só guentava mesmo era chegar até o Templo do Fogo Ardente. Entrou pela primeira vez porque estava cansada. Só prá descansar. Gostou do que ouviu e voltou. Sempre aos domingos, na mesma hora em que costumava ir á missa. Nunca foi notada entre os outros, jamais conversou com algum deles. Não dava o dizimo, pois não tinha nem pra ela mesma.
Assim distraída em suas recordações, ia tão rápido quanto permitiam suas forças e seus passos. Tirou uma bolacha da bolsa e começou a morder com vagar.
Mal viu um vulto vindo em sua direção. Desviou, encolhendo-se junto ao muro, Uma poça d’água enchia um buraco Enfia o pé esquerdo no buraco, O frágil corpo balançou em desiquilibro. Sobre um monte de tijolos quebrados, pedaços grossos de madeira, pedras, terra, blocos de cimento amontoados na calçada, dona Izordina cai.
8 = 8 = 8
Um raio de dor aguda, atinge sua cabeça. Uma luz de dor lancinante . Caiu Na calçada áspera e molhada
Em seguida, o negrume do nada, Os olhos, ainda que paralisados numa expressão vítrea, nada viam.
A ampla saia a cobria de um forma quase total, amassada entre coxas e braços. Os cabelos brancos espalhados sobre o rosto, confundia sua cabeça com a caliça da montoeira, Por quanto tempo permaneceu alí no chão?
A névoa úmida se transformou em chuvinha fina, Apenas suas cabeç permanecia fora do parco abrigo da saia ampla, fixos e vítreos. Cabelos cobrindo a face e o pescoço. Olhos abertos, paralisados, fixos num ponto inexistente,
[uma esquimia cereral? Um AVC? Derame cerebral? Ninguém jamais o saberá. Nem mesmo este autor, que pretende narrar os fatos com fidelidade, se atreve a fazer hipóteses]
Um clarão se faz dentro de sua cabeça. Luz fria, de tons suaves, pasteis de harmonia, paz.
Vida. Ainda vivia a velha senhora. Os olhos voltaram a registrar a triste paisagem da manhã enevoada.
Não sentia dor. Nem qualquer sensação. Não conseguia movimentar qualquer parte de seu corpo. Sequer conseguia abaixar as pálpebras. Fechar os olhos.?
A bolsinha se abrira deixando escorrer seu conteúdo de fé e de fome. As contas do terço crescendo e transformando-se em horrendos insetos, As bolachas derretendo uma gosma leitosa. Aranhas verdes, centopéias cor de fogo, formigas de duas cabeças sugam com sofreguidão o liquido espesso e leitoso que foram bolachas.
Quando terminam a bebedeira, se viram para ela, deitada, paralisada de terror. Quer gritar. Sua voz não se faz. Os terríveis bichos, que aumentaram de tamanho após o banquete das bolachas liquefeitas, abrem para ela suas fauces horrendas e avançam,.
Ela ainda tudo vê, entre pregas e buracos do vestido. Tudo acontecendo. Já ultrapassou todo os limites de sanidade, o que está vivendo é uma loucura, mas ela não sabe.
O chuvisqueiro passa, Mesmo assim, a manhã se torna mais escura pois um temporal se anuncia. Encolhida, paralisada, muda, ela vê passar algumas pernas e pés, Homens e mulheres, que nem a notam. Dois cachorros a farejam, rosnam e brigam sobre seu corpo. Depois que um deles, o menor, foge, o outro, um gigante da espécie, volta a farejar, e com focinhadas, faz frágil e leve corpo rolar pela calçada e cair na sarjeta.
Um catator de papeão e garrafas vazia passa com seu carrinho imundo e mambembe. Para, olha para o amontoado de pano. Puxa o tecido e encontra resistência pois o vestido está embolado sob o corpo. Desiste e segue em frente.
Um veiculo para ao seu lado. Rodas grandes, de caminhão. Barulho de metais contra metais. Ouve as vozes de homens; Seus sentidos se aguçam, pois percebe que logo será salva. Logo a descobrirão e a levarão dalí.
— Vamo depressa gente, antes da chuva cair!
Barulho de ferramentas remexendo no monte de entulho. Uma pá passa por suas pernas.
— E essa trouxa de pano sujo?—
— Põe tudo na caçamba.
Com um movimento só do poderoso braço mecânico, é carregada junto com a caliça e jogada pra cima. Seu frágil corpo resiste ao baque quando bate no fundo da caçamba.
Os olhos vêm que o ceu está limpo, azul com ténues nuvens dançando graciosmnte. Lindo ,
O veiculo trepida quando é ligado e colocado em movimento, Longo percurso tranquilo, seguido de outro cheio de solavancos, curvas e desconforto. Pára, faz manobras para frente e para trás.
— Aí tá bom! Pode despejar!
Rangido de ferragens girando, uma inclinação. Tudo escorre pela parte traseira. Uma queda livre sem fim e as nuvens no ceu rodopiam. Termina com o encontro de pedras e terras, lama, água, um caos,
A vertigem se transforma em um clarão de luz, uma luz cálida de tons suaves pasteis de harmonia e de paz , num ponto de luz que vai se intensificando e abrange toda sua consciência, em ondas confortantes de total harmonia com o Universo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
O SENHOR DOS CONTOS
Belo Horizonte 17 de fevereiro de 2022
Conto # 1160 da Série Infinitas Histórias