Contos do inconsciente. N°5 (Guerra)
Zumbidos finos de projéteis que passavam rente a sua cabeça e explosões seguidas de tremores na terra foram as primeiras impressões que pôde captar do ambiente. Cristian estava deitado com as costas no chão, vendo passar no céu escuro e chuvoso uma batalha de aeronaves sobre a sua cabeça. Um companheiro de batalha o levantou pelo colarinho da farda suja de lama, perguntando-lhe o motivo pelo qual ele estava deitado, dormindo naquele momento crucial da guerra.
- Levante, homem! Os alemães estão atirando lá de cima do morro.
Cristian pôs os olhos no binóculos e mirou o topo do Morro da Polícia, na zona leste de Porto Alegre, bairro em que morava, e viu, atrás da casinha cercada de antenas de rádio e televisão, um soldado alemão com um cachimbo na mão, sentado em uma cadeira rodeado por outros quatro prussianos. Não eram deles que estavam vindo os disparos. Mas como poderia, se esta visão era uma cena de um conto de Maupassant que Cristian havia lido em vigília no dia que antecedeu o sonho? As atrocidades da segunda guerra mundial eram o acontecimento histórico que mais chamava a atenção de Cristian. Maupassant, que escreveu muitos contos retratando a guerra franco-prussiana em 1870-71 e que estava sendo lido por Cristian, acabou entrando em cena, quem sabe para fazer com que Cristian fizesse dessas imagens oníricas um breve conto do inconsciente, já que havia passado muito tempo desde o último. Os intercadeamentos metonímicos e metafóricos estavam em pleno processo de construção das imagens. Assim como os dois amigos de longa data que foram pescar juntos em território ocupado por alemães no conto de Maupassant, os dois soldados do sonho também estavam indo em direção aos inimigos. Os fuzis que ambos seguravam agora haviam se transformado em varas de pesca. Deixaram-nas de lado e entraram no rio que ficava no pé do morro.
-Aposto que o Fuhrer está a apenas alguns poucos quilômetros atrás do morro.
Foi só o companheiro ter terminado a frase e no momento seguinte Cristian agora estava espionando pela fresta de uma janela Hitler, Bismarck e o Major da SS, interpretado por August Diehl em Bastardos inglórios, sentados os três juntos na taberna onde aconteceu a matança no filme de Tarantino. Cada um estava com uma caneca de chopp na mão e uma carta colada na testa como no filme, escrito nas três o nome de Lionel Messi.
-Não te falei! O homem está ali bem pertinho da gente. Com um tiro só eu acabo com os três.
Cristian olhou para o lado para dizer para seu amigo que se ele continuasse gritando daquele jeito, era capaz de os inimigos os verem. Só que ao virar o pescoço, o amigo agora era um cavalo falante. Toda a cena fez com que Cristian desconfiasse que estava nas últimas linhas da Revolução dos bichos, de Orwell.
-Olha só quem eu encontro por aqui, dois franceses desgraçados!
Cristian e o cavalo olharam para trás e viram os alemães que estavam sentados no morro apontarem suas armas para os dois e falarem todos de uma vez só -"Heil Hitler".
Como os dois amigos do conto de Maupassant, eles foram colocados de joelhos um ao lado do outro e indagados sobre o motivo de eles estarem ali; ficaram quietos como os pescadores de Maupassant. O alemão, que estava com o cachimbo alguns instantes atrás, pegou uma metralhadora.50 e começou a disparar contra os dois. Neste momento Cristian acorda para o mundo de vigília com o barulho de uma britadeira sendo usada em algum lugar muito perto de onde ele se encontrava dormindo.
O fato de ter morrido no sonho fez lembrá-lo de quando leu em algum livro, talvez de Jung, que a própria morte no sonho pode ser uma imagem simbólica de um renascimento na vida de vigília. O que realmente era difícil de entender era como pode acontecer de que no sonho, como já acontecera muitas vezes, um barulho qualquer ouvido por ele enquanto estivesse dormindo, fizesse com que se criasse uma espécie de enredo onírico ao avesso, como se as imagens dos sonhos se antecipassem ao ruído que o fazia despertar, como se o tempo andasse para trás nos sonhos. Esse pensamento ficou muito presente na sua mente logo após o despertar. Passados cerca de dois minutos, depois de conjecturar sobre os fenômenos que acontecem naquele limiar entre estar dormindo e acordado, fenômenos que às vezes não obedecem a lógica do nosso espaço-tempo, levantou-se para tomar um copo d'água e ver de onde vinha o barulho da britadeira-metralhadora.