"RECARREGAR O CELULAR"

"RECARREGAR O CELULAR"

Marcionílio acordara indisposto, indefinível ar de ameaça lhe sombreava o espírito... mas, o que temia ? Nem êle sabia, porém seu sexto sentido o alertara. Havia algo de errado na cidadezinha... o que poderia ser ?! Os acontecimentos do dia anterior, se isolados, eram fatos triviais, de pouca importância, contudo, havendo ligação, seriam prova definitiva da existência de perigosa quadrilha... de garotos ! E não agiam sozinhos, não mesmo ! Não podia ser coincidência a repetida presença do "crianção" Robério próximo a um deles... êle e seu "pitbull" amarelo, cara e jeito de perigoso, a expressão maior do mau-humor. Estranhara porque o solitário contador da cidade passara a ter um... agora, tudo se encaixava ! A fêmea "pitbull" do contador reconhecera o macho do Robério, não era atração momentânea, formavam um casal. Mas porquê o contador, benquisto e admirado por todos, precisaria de um cão... de guarda ? E se não fosse de guarda ?! Poderia ser um vigia do morador daquela casa, para impedí-lo DE SAIR ? Sim, isso era possível !

Tomava café num banquinho tosco de 2 lugares, improvisado com tábuas velhas e instalado no arremedo de jardim na frente de sua casa. Se aproxima o "Zé Luís", a pessoa exata para quem queria dividir suas preocupações. O Zé parecia intranquilo !

-- "Você viu aquilo, ontem ? Aquele rapaz me irrita" !

Ambos já passavam dos 40 anos, embora o Zé fosse um pouco mais jovem. Marcionílio justificou-se, quase arrancara os cabelos do rapagão moleque. Marcionílio reagira de forma bem agressiva ao "cumprimento" usual do idiota, pondo as duas mãos sobre a cabeça do interlocutor, gesto que incomodava quase todos. Como não o fazia com mulheres, tinha-se a sensação de molecagem, palhaçada, gozação. Marcionílio "dera o troco", só que lhe puxando cabeça e cabelos. Agora estava arrependido !

-- "Zé, li recentemente que tem coisas que são "gestos de dominação" de um homem sobre o outro, como bater no ombro ou nas costas do amigo. Isso de pôr a mão sobre a cabeça de qualquer criança é um deles. Não sei ainda se o Robério faz isso de forma involuntária, penso que é proposital. Arrumei um inimigo, vi pela cara dele que não gostou nem um pouco".

-- "Acho bem estranho o convívio dele com esses garotos desocupados da cidade... e o grupo está aumentando" !

-- "É verdade, e os furtos também, já são várias as casas roubadas... ninguém descobriu nada, ainda" !

Da colina próxima, na rua de cima, uns 60 ou 80 metros além, surge lança indígena em longo vôo e vem cravar-se a metro e meio da dupla sobressaltada. Recuperados do susto, vêem na rua dois ou três garotos.

-- "Não, Zé, não foi acidente, essa flecha é só um aviso, quem a lançou poderia ter matado um de nós" !

Subiram até a rua, no ponto onde imaginaram estar o gaiato que atirara a lança incomum. BINGO ! Entre pequenos pés descalços no saibro arenoso da rua, marcas de tênis, calçado usual do Robério. Isso era preocupante... as suspeitas começavam a se encaixar. ,as o que seria a expressão "recarregar o celular" tão usada entre êles ? Marcionílio decidiu poupar "Zé Luís" de suas conclusões, êle era ingênuo demais para ver a cruel realidade. Decidiu interrogar o velho contador. A fêmea "pitbull" quase lhe abocanha o pescoço, foi salvo pela cerca de tábuas. A cadela ameaçou o velhote com rosnado preocupante.

-- "Que novidade é essa, doutor Francelino ? O senhor nunca teve cachorro" ?

-- "Pois é, foi presente do Robério, me disse que ela está no cio e quiz evitar que transasse com seus outros cães" !

-- "Vou ser breve, doutor... o que significa "recarregar o celular" que o Robério usou outro dia, quando falou contigo ? Fiquei muito curioso" !

O velho empalideceu, engoliu em seco e disfarçou:

-- "Huumm, nada demais, é brincadeira do rapaz, dia de eu depositar o dinheiro no Banco, grana da venda de seus cães e das aulas de adestramento" !

-- "Não é da minha conta isso, foi só curiosidade, mas não diga a ninguém que perguntei" !

De repente, a cidade ficara muito perigosa, era hora de partir... como morava com uma prima, deixou a casa a seus cuidados. Ouvira falar de recente caso de um goleiro com amigo que cuidava de cães, que devoravam cadáveres. Se imaginou sendo estraçalhado por êles ! Para todos os efeitos, iria fazer um curso na capital. Já na Rodoviária recebe a visita do "loirão" e seus 5 ou 6 moleques, êle com ar de desafio:

-- "Vai viajar, professor ? Vê se não se mete na vida alheia por lá, isso não é nada... "saudável" !

"Faz aspas" com as mãos... o desgraçado o vigiava !

-- "Vou trabalhar e não... ROUBAR, mas comprarei uma pistola para "receber bem" certos "amigos"!, e devolve o gesto pro marginal irado.

"NATO" AZEVEDO (em 5/nov. 2022, 5hs)

OBS: mais um conto surgido a partir de um sonho !