UM AMOR DIMENSIONAL

  Carlos e Valéria eram namorados, tomaram um Uber no centro da cidade dirigindo-se para suas casas, num bairro próximo. Ele desceu uma rua antes, onde ficava sua casa, ela seguiu sozinha, morava mais a frente. Durante esse curto percurso para sua residência ela sofreu um grave acidente, o veículo em que viajava foi abalroado por um caminhão e capotou. Valéria ficou internada em estado grave com problemas neurológicos e perdeu sua capacidade motora. Após quase dois meses em coma ela deixou o hospital, em casa ficou totalmente dependente da família, em uma cadeira de rodas e sem reconhecer ninguém. Seu namorado Carlos sempre a visitava, mas o relacionamento deles transformou-se em amizade, mesmo ela não o reconhecendo, seu olhar era para o vazio, às vezes encenava um tímido sorriso quando via Carlos.

   O tempo passou e o rapaz arranjou outra namorada, porém visitava a ex com alguma freqüência, no entanto em alguns meses já a tinha esquecido por recomendação de seus familiares, não valia a pena esperar por uma recuperação de Valéria, pois segundo os médicos havia uma remota possibilidade dela voltar a ter os movimentos. Carlos seguiu sua vida com a nova namorada e em alguns meses já estava noivo de Suelen, sua nova eleita. Acontece que certo dia quando voltava de uma festa com Suelen o carro que ele dirigia se precipitou em uma ribanceira e caiu em um riacho. Ele havia ingerido bebida alcoólica e perdeu a direção do veículo. Levou uma grande pancada na cabeça e teve que ficar internado por vários dias com problemas neurológicos. A moça, sua namorada, deu uma certa atenção a ele, mas vendo que Carlos não reagia sem os movimentos motores, resolveu abandoná-lo. A vida de Carlos mudou drasticamente, sua família o manteve em um quarto totalmente dependente, vivia constantemente em uma cadeira de rodas.

Em outra área da cidade Valéria, até então impotente, teve um súbito restabelecimento, despertou como se saísse de um sono profundo. Olhou ao redor e não viu ninguém, estava em uma cadeira de rodas, os seus familiares deveriam estar em algum cômodo da casa em alguma atividade doméstica. Conseguiu levantar-se e tentou andar. Conseguiu. Caminhou alguns passou mas teve a nítida impressão de que levitava, achou delicioso aquele jeito de se locomover. Teve plena consciência do fato ocorrido com ela, do acidente que a deixou inválida. Mas isso agora era passado, sentia-se tão bem nesse momento que resolveu sair dali, disparecer um pouco, estava realmente precisando. A sensação era de que seu corpo estava leve, podia se locomover com bastante facilidade, flutuava tal qual uma pena ao vento. Seu pensamento pairou em Carlos, havia se lembrado dele. E foi até ele, como não sabia, mas chegou até ele, que sorriu ao vê-la. Iniciaram uma conversação e ele lhe confidenciou que sonhara com ela, que teve a mesma sensação que ela, despertando para a vida e com seu pensamento voltado para sua ex-namorada. E ali estavam os dois, o casal apaixonado, ambos fora de suas cadeiras de rodas, envolvidos num abraço e aos beijos consoladores, com suas almas plenas de felicidade. E ali ficaram por um bom tempo, afinal teriam que se despedir, não para sempre, mas para uma outra oportunidade, para viverem novos momentos de amor, um amor especial, dimensional, quando só eles conseguiam viver. E assim esse amor "acordou", tornou-se quase real, porém puro, existencial, somente para eles. Estavam sempre presos em suas cadeiras de rodas, no entanto tinham eles a possibilidade de se encontrarem e viverem momentos de felicidade freqüentemente.