O HOMEM QUE ALUGOU SUA BARRACA AO DINHEIRO SEM CHEIRO

Naquele lugar havia um burburinho que ele já não sabia muito bem do que se tratava.

Não lhe havia força para olhar o entorno.

Há um bom tempo atrás, ele e sua família moravam numa casa de reboco a vista, tendência da arquitetura mais moderna das vidas deslocadas "do chão ao chão" e que, não no caso dele mas aos olhos da promessa da sociologia gritante, até poderia revelar algum antigo luxo extravagante de consumo. Algo que ele também já perdera.

Há lugares nos quais as perdas são o único destino.

Pelas ruas, avenidas, calçadas, morros e demais edifícios da cidade, grande e dura, não era difícil se perceber que ali as eleições se aproximavam.

Bandeirolas com as faces dos mesmos salvadores das vidas, os de todas as promessas mais miraculosas, se espalhavam por todos os lugares da cidade.

As campanhas ferviam fé e esperança que logo se dissipam ao encerramento da festa inerte.

Diziam ali que o sufrágio era uma grande oportunidade de enfim se sonhar com o que nunca chegava, tudo a altíssimos custos e também, dentre a população mais pobre, de se alugar um pedaço da terra batida para se fincar um "banner" de propaganda política em troca de alguns tostões que nunca sequer remendam a alma de vida alguma.

Junto com a bandeira do político vinham algumas camisetas estampadas com sua face, várias figuras santificadas dos locatários para serem usadas para aplacar o frio da vida dos locadores.

Posto que, paliar tantas fomes muitas vezes é a única salvação ao imediatismo de se sobreviver...no próprio chão.

Meu personagem principal era dono amparado duma barraca da calçada que encarecidamente havia ganho do "ESTADO", na qual, por ora, flamulava uma bandeira de propaganda política dum candidato que tudo prometia e que lhe pagava uns tostões pelo espaço; "cidadão" que nem de longe imaginaria que era ele que também a pagava, como às tantas demais contas impagáveis - das eleições e das vidas dos eleitos- contas sempre invisíveis aos olhos daqueles cuja acuidade sensorial nunca lhes fora permitido apurar.

Mas como assim, "pagar as contas" por parte de alguém sem o "cash" de moedas físicas?

Como a alguém que nada tem, ainda lhe haveria a possibilidade de pagar por algo eterna e sistematicamente tão caro?

Talvez ele nunca saberia que há contas altíssimas que se paga ininterruptamente com várias e inesgotáveis moedas de troca.

Moedas das vidas roubadas.

Então, via-se ali que os "flashs" das reportagens das multimidias estavam por todos os lugares juntamente às empresas de estatísticas, essas movidas pelo que apenas DEUS saberia contar, e que a cada dia perguntavam e lançavam às mídias as tendências de vitória dos que se propunham vencer o pleito, sob o juramento de salvar a pandemia de tão sôfregas vidas alheias pulverizadas ao vento das falácias; destinos nunca consumados agora espalhados pelas calçadas sob as barracas alugadas ao tempo perdido.

À aproximação de alguém dum comitê eleitoral, desses tantos situados nos endereços de aluguéis mais caros das megalópoles (que meu personagem também não sabia que os pagava) o homem percebeu que seria solicitado a falar.

Se sentiu importante, afinal, seria entrevistado.

Dentro da barraca, borrifou um teco de água da chuva na face, ajeitou os cabelos com as mãos e abriu os olhos cansados e sonolentos.

-Bom dia, somos da imprensa e das pesquisas eleitorais, podemos lhe falar por um momento?

Ele, já despertado mas sem café da manhã, balbuciou que sim.

Não tinha energia e nada a oferecer às tão nobres visitas, a não ser sua esperança já finda.

Sentaram-se todos no chão deteriorado.

-Estamos ao vivo nessa entrevista, poderia olhar para ali, o senhor já tem candidatos ?

-Candidatos? Pra quê, moço?

-Às eleições múltiplas que se aproximam. São vários os cargos a se decidir para o grande futuro do país.

-Cargos? Sei disso não, moço. Futuro? Isso existe não moço, já faz tempo...

-Então o que acha das mais recentes pesquisas de estatística? Acha que estamos salvos?

-Moço, pelo amor de Deus, me explica o que é isso...de que salvação o moço fala?

-Corta! Corta! Gravando...então , poderia nos responder em qual desses aqui poderia ou não votar? É importante pra nós! Afinal somos uma REPÚBLICA e devemos votar bem pelo que é de todos. Qual a melhor proposta no seu entendimento?

-Mas moço, eu tenho nada não! Nem república! Nem proposta! Eu tenho só essa barraca! Nossa proposta é viver nela. Já tá bom!

O vento soprava alto e a bandeira do santinho do candidato, ali tão pomposamente fincada, tremulava por sobre a tragédia das tantas barracas, com toda força delatora do mundo.

Parecia um sopro da essência a gritar a origem daquilo que nunca se consegue salvar, pagar e muito menos entender.

-Sei não moço, não sei disso não, acho que não voto em ninguém não! Não tem milagre!

-Mas o senhor não vai votar nesse candidato da sua bandeira? O senhor é um cidadão, tem o dever de votar!

-Vou não senhor, nem sei quem é esse político, moço, só aluguei minha barraca pra ele pra mode poder comprar um pouco de comida pra mim e minha família. Quando acabá tudo isso, nem sei se continuamos vivos. Quando acaba os votos eles somem tudinho daqui. Meu dever é tentar viver , moço!

-Corta, corta! Agora, olha aqui...qual a indicação de voto do seu artista preferido? O senhor vai fazer voto útil?

-Artista preferido? Como assim? Artista sou eu moço! Voto útil? Mas moço, nem sei se tem algum voto útil pra mim!

- Corta! Corta! Olhe para aquela câmera ali ó, por favor, o que o senhor acha do todo do nosso país, o senhor está bem, se sente feliz aqui? Ou vai optar por uma vida melhor? O que o senhor acha da causa da Amazônia? O senhor colabora com a sustentabilidade do Planeta?

-Eu não sinto nada não moço, não sinto mais nada...nunca tive vida moço, eu só preciso acordar e sentir que estou só "meio-morto". Minha barraca é reciclável e plantei mudas de margarida nesse fratura do asflato da avenida. Eu colaboro como posso, moço!

-Ok, certo, olha, agradecemos ao senhor pela sua entrevista tão gentilmente honesta e pelos dados importantes que nos forneceu para o futuro do país. Boa sorte ao senhor e a toda sua família!

Conto que este meu presente conto nunca foi ao ar no horário nobre da televisão. Muito menos nas redes ditas "sociais".

Apenas constou nas gordas estatísticas pronunciadas que só medem o desespero de campo, frente às crônicas rachaduras da terra.

Meu personagem desconhecido jamais soube que o dinheiro que comprou e pagou o aluguel da sua barraca da calçada foi dinheiro saído dele também, ainda que negado ao toque do seu bolso sedento por respeito e cidadania.

Dinheiro que nunca tem cheiro...sem corpo, sem propósito, sem destino nem presença clara e sem dividendos nas tantas vidas mortas que financiam barracas alugadas... aos montes pelas calçadas do não feito.

Meu personagem nunca soube que era rico o suficiente para cotizar todas os orçamentos, as contas públicas, todos os sufrágios dos mais caros e mais tristes de que se tem notícias, fundos eleitorais, partidários, pesquisas eleitorais a preço de ouro, enfim, acordos a se perder das vistas e das vidas.

O meu personagem era o homem pobre MAIS RICO de que se tem notícias. Ele nunca acreditaria no que escrevo.

Decerto me teria como uma louca...que conta estórias.

O Homem que alugou a sua barraca, amanhã, poderá ser qualquer um de nós.

Só a sorte, com muita pouca sorte nos dirá.

Talvez será apenas mais uma dessas "breaking news" que alimentam as telas, notícia tão velha...e tão desimportante, que nunca sairá sequer na televisão.

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