GURUFIM ADIADO
GURUFIM ADIADO
BETO MACHADO
Não só por ser numerosa, mas por ser simpática aos extremos, aquela família era a mais conhecida daquelas paragens. Quinze irmãos. Sim... Todos vivos. Doze homens e três mulheres. Um pai severo, de ascendência portuguesa e uma carinhosa mãe, oriunda lá das brenhas das Minas Gerais, traziam a criação e a educação dos filhos com um único cabresto preso nas suas quatro mãos unidas. E dentro desse abraço materno-paternal é que cresceram todos os frutos da família Sampaio.
Os meninos, aqueles que iam se desmamando e se desfraldando, eram levados para a roça, sem nenhuma cerimônia demonstrada pelo patriarca. E gostavam daquilo que faziam. Desde o carpir a terra, até ao colher dos frutos, dividiam-se, os irmãos, espalhados pelas grotas de bananais ou por entre leras de caquis e laranjas, serra acima e canteiros de leguminosas e hortaliças nas planícies. Os pequeninos se divertiam arrancando tiriricas nas hortas.
O tempo passou para eles como passa um avião super sônico. Ninguém viu passar. Apenas ouviram. Ouviram com bastante atenção os conselhos do pai e executaram todas as tarefas por ele determinadas. Até porque, caso suas ordens não fossem cumpridas a contento, “o pau comia”. Naquele tempo não se pensava, ainda, no tal do Conselho Tutelar. Coisa da modernidade. Para os saudosistas: “a malfadada modernidade”... Eu não concordo com esse adjetivo dado às coisas modernas. Mas cada qual tem seus motivos para qualificar os momentos, pelos quais passa.
O Conselho Tutelar foi instituído para se contrapor aos excessos praticados por contumazes torturadores de filhos e ou tutelados, sob a alegação de estarem educando. Esse não era o caso da família Sampaio. A expressão “o pau comia” está entre aspas muito oportunamente. A severidade do pai e o carinho da mãe, misturados com a boa índole dos filhos resultaram numa argamassa, cuja liga mantém até hoje a alvenaria familiar de pé. Firme como uma rocha.
O patriarca octogenário hoje ainda se vangloria de, mesmo sem saber ler e escrever, criou seus quinze filhos, e seu método não lhe permitiu perder nenhum para a vagabundagem.
___ Agradeço a Deus por me permitir criar meus filhos, até aqui, sem perder nenhum. Nem pra morte nem pros bandidos. – essa era a oração de todas as noites, de Manuel Sampaio.
Do topo dos seus oitenta e cinco anos seu Manuel Sampaio faz questão de caminhar dois quilômetros, todos os domingos, pela manhã, da sua casa até o Largo do Mendanha, para colocar em ordem os “assuntos”, quase sempre repetidos, com o grupo de contemporâneos seus, com sangue lusitano. É perceptível, de longe, a algazarra na praça. A maioria ainda carrega consigo o sotaque português. Fazem questão de gritar o nome do infeliz que apontar na longínqua curva do Caminho da Serra, acrescentando um palavrão ou uma frase obscena ao nome do pobre longevo atrasado.
Quase sempre as frases têm a ver com fidelidade conjugal ou com virilidade masculina. O segundo caso é bastante pertinente, devido à avançada idade da maioria absoluta dos componentes da confraria. Alguns filhos de Manuel Sampaio, hoje adultos, já fazem parte da Patota dos Coroas. Eles fazem questão de acompanhar o pai, aos domingos para as Troças na Praça, alimentando, com humor rascante os ouvidos dos passantes e dos que se aproveitam da sombra das amendoeiras, testemunhas de inúmeros amores feitos e desfeitos com a mesma velocidade com que caem as folhas no outono.
A longevidade faz dos longevos uns seres libertos de certos temores que a juventude não consegue se desgrudar. E a Patota dos Coroas não foge dessa regra. O destemor da morte é um desses exemplos.
Certa ocasião, Toninho Limoeiro, membro do grupo, foi “morto” pelos amigos da Praça. Pelo simples fato de não ter aparecido no local e horário dos encontros de domingos.
Toninho fora surpreendido positivamente, com um aumento substancial da sua safra de limão. A escassez de mão de obra nas lavouras e nas feiras livres o obrigou a compor a sua tropa de vendedores. Para alimentar a troça da morte do Toninho, os dois filhos mais novos do Manuel Sampaio também compuseram a trupe do limão. Foi o bastante para a notícia se espalhar com um certo cheiro de verdade.
Um comerciante do Largo do Mendanha, cliente fiel, comprador do limão de Toninho, atravessou a rua, rodeou a praça e não viu Toninho. Não se desesperou porque o grupo dos “Velhinhos” poderia saber o paradeiro dele.
___ Algum de vocês viu Toninho por aí?
___ Ué! Não sabe não? – Chico Tiriça perguntou com tom sisudo e cabisbaixo.
___ Não sabe o quê? – com os olhos arregalados questiona Zezinho Ferreira.
___ Bateu as botas. – afirma Tiriça.
___ Não brinca não, cumpadi.
___ Sério... Os dois filhos mais novos do cumpadi Manuel Sampaio é que foram dar apoio pra família. Ajudando nas papeladas pro sepultamento.
Manuel Sampaio ouviu seu nome no meio daquela conversaiada toda, não se fez por rogado. Mergulhou no assunto.
___ Cumpadi Zezinho, cê ta dormindo muito. Cuidado que quem dorme muito, vive pouco, heim. Hoje mais cedo a conversaiada, por aqui, era só sobre a morte do cumpadi e finado Toninho.
___ Sabe de Quê que ele morreu?
___ Essa tal de covide.
___ Mas logo agora que parou de morrer gente nos hospitais que ele achou de se meter com essa encrenca?
___ Que encrenca, cumpadi?
___ Essa tal de covide.
___ Cê não sabe da maior.
___ O quê?
___ Minha neta vai ter neném por esses dias. Ela disse que vai botar o nome na menina de Covide. Que Deus perdoe essa doida. Acho que ela vai “dar com os burros n’água”. Uma mãe botar nome ruim numa criança que saiu do ventre dela, é pedir pra ser castigada. Enfim... Esse povo novo acha que sabe de tudo... Bom, vamos desejar descanso e paz ao espírito do Finado Toninho.
Manuel Sampaio teve a idéia de fazer uma arrecadação para comprar bebidas e “comes e bebes” para o gurufim do finado Toninho Limoeiro. O termômetro de que a troça havia pegado, foi a grande participação dos que paravam para ver o que estava acontecendo ali na mesa central do Largo do Mendanha. Cada vez que um ia assinar a lista, os curiosos rodeavam a mesa pra ver se o “caboclo” era analfabeto de tinta no dedão. Teve uns oito nesse time. Muitos deles se orgulhavam de ter conquistado o que têm, mesmo sem conhecer uma letra se quer. Só que fazem questão de mandarem os seus filhos para a escola.
Aquele domingo caminhava para uma tarde muito quente. Os botecos do Largo do Mendanha esvaziando seus estoques de cerveja e de refrigerante, sem nenhuma cerimônia de mostrar aglomeração, encheram suas calçadas de mesas e cadeiras, plagiando o comportamento dos comerciantes da zona sul, Barra e Recreio.
A lista do gurufim do Toninho bombava e já passava dos dois mil reais. E enquanto os caminhões, vindos da feira de Campo Grande, não começassem a chegar, aquela mentira ia passando por verdade: Toninho Limoeiro permanecia morto.
Mas o imprevisto e o imponderável existem para mudar situações. E desta vez ele veio em forma de um menino pré- adolescente. O garoto saltou do ônibus 812, na praça onde os velhotes aglomeram todo domingo. Todo final de semana ele vem de Bangu, brincar com os primos. Não quis contornar a praça. Passou exatamente pelo meio da Patota dos Coroas para encurtar o caminho. Ouviu falarem o nome do seu tio. Daí, perdeu a pressa e apurou os ouvidos.
___ Ele é sobrinho do finado Toninho. – Alguém o reconheceu.
Não é costumeiro passar criança nem adolescente no meio da Patota dos Coroas. Mas o menino se atreveu.
___ De que Toninho vocês estão falando? – perguntou com os olhos arregalados.
___ Do Toninho Limoeiro. – a resposta veio em coro.
Nesse momento o jovem começa a perder a cor e, súbito, desmaia. Só não bateu com a cabeça no chão da praça porque alguém que estava próximo dele o amparou, colocando-o numa cadeira vinda lá do boteco do Zezinho Ferreira.
Um outro jovem, de mais ou menos a idade do desmaiado, diz em voz alta:
___ Ele saltou do 812 agorinha mesmo.
A preocupação com a saúde do jovem desmaiado, agora era prioridade zero. Seu Manuel Sampaio recolheu a lista do gurufim que estava sobre a mesa do centro da praça, guardou-a no bolso e encerrou a arrecadação.
O próximo passo era arrumar alguém para levar o garoto para o UPA ou para o Rocha Faria.
Numa localidade onde as pessoas são prestativas, como é o Mendanha, isso é “galho fraco de se quebrar”. A tarefa foi logo feita. Direto pro Rocha Faria. Dia de domingo a UPA é uma “benção”. Uma outra tarefa era encontrar alguém que pudesse avisar na casa do, agora, não mais finado, Toninho sobre o incidente ocorrido com o sobrinho da família, na praça do Mendanha. Tarefa também cumprida com sucesso. Menos de meia hora dona Angelina já estava pronta esperando um Uber para ir ao hospital, atrás do sobrinho. Manuel Sampaio fez questão de bancar a corrida do carro de aplicativo com o dinheiro arrecadado para o gurufim do marido da não mais viúva, dona Angelina. É claro que ela não sabia a origem daquele dinheiro.
Houve um pacto entre os membros da Patota dos Coroas de encerrarem, a partir daquele momento, as troças do gurufim.
Depois de duas horas começam aparecer os caminhões vindos da feira de Campo Grande. Na praça, os coroas, todos com “cara de bambu”, começam a se espalhar. Vai um pra cada boteco. As três horas da tarde aparece o caminhão trazendo a trupe do Toninho. Ele dirigindo. Foi “um Deus nos acuda”. Um corre-corre para todos os lados, dando a entender que fosse o ataque de um enxame de abelhas ou invasão de bandidos pra fazer arrastão.
Passados alguns minutos, dava pra se ouvir vozes misturadas a choros:
___ É o Toninho que ressuscitou. É ele sim. Ele veio dirigindo o caminhão... Cruz credo!
A notícia da “ressurreição” do Toninho correu tão rapidamente quanto a da “morte”.
Manuel Sampaio ficou cabreiro, pois não viu seus filhos descerem do caminhão. Agora, a praça tava limpinha de gente. Por onde Toninho ameaçavas caminhar, o povo arrochava na corrida. Manuel Sampaio, autor da trapalhada toda, vai ao encontro de Toninho.
___ Meus meninos não vieram com vocês, porquê?
___ Deixamos eles lá no Rocha Faria. Teve um brigueiro da porra lá na feira e o teu filho mais novo, aquele magrelão, tomou um soco no olho mas não é muito grave não. Ficou lá só pra fazer curativo.
___ Puta que pariu!... Que domingo é esse?... Olha a tua mulher também ta pra no Rocha Faria.
___ Minha mulher?
___ Sim. Ela mesmo... Teu sobrinho saltou do 812 aqui na Praça e desmaiou. Levaram ele pro Rocha Faria.
___ Puta que pariu! A Angelina não conhece nada em Campo Grande.
___ Ela foi de Uber.
___ mas eu acho que ela não tinha dinheiro.
___ Eu paguei. Deixei o dinheiro com ela. Volta lá.
___ O garoto é cardíaco... E me diz: que palhaçada é essa dessa gente ficar me olhando desse jeito e só de longe?
___ É que te mataram aí, meu cumpadi.
___ Porra, de novo?
___ Tu já tinha morrido antes?
___ Deixa de graça, velho babão. Isso só deve ter saído da tua cabeça oca. Não tem nada pra fazer...
___ E tu, quando é que vai aprender a mentir de verdade?
___ Porque?
___ Olha lá os meus meninos, seu bobão.
___ Foi só pra ver se você tava ligado.
___ Pois você trate de ir logo buscar sua mulher e seu sobrinho no hospital.
___ Vou pegar meu carro ali no quintal do Santinho.
Manuel Sampaio voltou para o boteco do Zezinho Ferreira, depois de sinalizar para os filhos fazerem o mesmo. Ele precisava contar para os dois o cripocó criado por ele. Provocando o incidente do desmaio do sobrinho do Toninho. Limoeiro.
Toninho retorna do hospital, trazendo a esposa e o sobrinho, esse devidamente medicado e com recomendações de muito cuidado com emoções fortes.
Ao estacionar seu carro na calçada do boteco do Zezinho, Toninho percebe que Manuel Sampaio ainda está por ali. Dona Angelina também vê o causador do mal estar do sobrinho e se nega a sair do carro.
___ Leva minhas desculpas ao compadre Zezinho. Não me sinto bem perto de quem me causou mal ou aos meus entes queridos.
Dona Angelina, de personalidade forte, também não deixa seu sobrinho sair do carro, o que o motivou a recostar no banco traseiro e dormir até quando seu tio retornou do boteco, com duas bolsas com cervejas e refrigerantes. Mesmo assim Toninho teve que ouvir reclamações de dona Angelina.
___ Pensei que tu querias nos matar de fome. Este gajo já deve ter as paredes do estômago a saírem pelas costas. Tu Já viste as horas? Cá estou tão somente segura pelo café matinal.
___ Quando você desenterra esse teu sotaque português é que as coisas não vão bem... Vamos lá no restaurante do Caminho da Serra, daquele meu amigo Lázaro.
No boteco do Zezinho Manuel Sampaio aproveita a saída do Toninho para contar, tintim por tintim, a troça da “morte” e do “gurufim” do Toninho Limoeiro. Durante a narrativa espetaculosa os presentes se escangalharam de rir.
Os leitores devem estar estranhando, e eu já me desculpo por isso, a falta de mencionar o uso de telefone celular, visto que a estória acontece contemporânea aos tempos presentes. Isso significa que a utilização desses equipamentos de comunicação não servem só para dizer alô. Quase nada do que aconteceu prosperaria se fossem utilizados telefones celulares entre os personagens envolvidos, a título de confirmação de notícias.
Ao cabo dessa estória, só nos resta agradecer a Deus pela vida de todos e gozar da cara da morte, como faz Manuel Sampaio, sempre que pega alguém para a esparrela de morrer sem perder a vida. E, com esse reboliço todo, plenamente resolvido, Manuel Sampaio pagou todas as rodadas de cerveja do boteco do Zezinho com o dinheiro arrecadado para o velório do Toninho Limoeiro e ainda sobrou uma grana para o próximo domingo, já que esse foi mais um GURUFIM ADIADO.